terça-feira, 15 de junho de 2010

ENTREVISTA DA 2ª ABDIAS NASCIMENTO

Pouco ousado, Lula não foi até o fim contra racismo
INDICADO AO NOBEL, LÍDER NEGRO FAZ A DEFESA DE MARINA E DIZ QUE
DISCURSO DA MISCIGENAÇÃO É UMA COBERTURA MORAL PARA O PRECONCEITO

PLÍNIO FRAGA
DO RIO

No dia 8 de outubro, uma comissão escolhida pelo Parlamento norueguês
apontará qual dos 237 indicados receberá o Prêmio Nobel da paz deste
ano. Entre eles, o militante do movimento negro Abdias Nascimento, 96.
A indicação ao Nobel é o mais novo item no currículo deste pintor,
dramaturgo, escritor, poeta e fundador do Teatro Experimental do Negro
em 1944.
Ex-senador pelo PDT (suplente, assumiu duas vezes a vaga de Darcy
Ribeiro), Abdias não crê que será o escolhido: "Não acredito em
vitória porque depende de uma mobilização muito grande de pessoas
importantes para sensibilizar aquele povo de Oslo. E eu não tenho
isso".
Recém-recuperado de problemas de saúde, ele mantém o bom humor e o
apetite: "Como feijoada, mocotó, picanha. Muita pimenta. No almoço e
no jantar."
Adbias recebeu a Folha na sede do Instituto de Pesquisas e Estudos
Afro-Brasileiros, fundado por ele.
Folha - O Supremo Tribunal Federal decide sobre a constitucionalidade
das cotas raciais. O sr. é a favor das cotas?
Abdias Nascimento - Claro. Já que houve restrições é importante que
haja também leis que assegurem valores como ingressar na universidade.
Em 1946, na Constituinte, eu já falava dessas coisas, de como criar
uma forma de ajudar, auxiliar os descendentes de africanos no Brasil.
É preciso dar apoio material objetivo aos afrodescendentes... A
abolição não aboliu as restrições econômicas. Aboliu e daí? O que
aconteceu? Não aconteceu nada que favorecesse realmente o descendente
africano.
Os críticos defendem cotas sociais ou de renda, que beneficiem não só
os negros, mas todos os mais pobres.
Os outros não tiveram esse tipo de entrave. Por que é preciso
especificamente esse tipo de reparação? A injustiça em cima dos
africanos e descendentes continuou mesmo depois da abolição.
A sociedade brasileira nasceu sob o signo do racismo e continua
racista até agora.


Então o Estado deve intervir?
São necessárias leis de apoio bem claras. Não foi na lei que se
inscreveu que o negro era escravo? Estava lá escrito. Havia políticos
defendendo isso no Parlamento.
Não há nada de mais que sejam escritas nas leis do país uma série de
garantias para que os negros possam cursar a faculdade, que o negro
possa entrar nesta ou naquela carreira, no serviço público. Dos mais
de dez ministros do STF só há um negro. Tinha de ter o mesmo número de
negros e brancos. Isto é o que seria a Justiça no país.


Há quem diga que o Brasil é miscigenado, e por isso não faria sentido
enxergar divisão racial aqui.
Isto é a cretinice brasileira, a falta de caráter, a sem-vergonhice
brasileira. Isso vem de longe. Este discurso é para ajudar o Brasil a
continuar racista. A continuar a ter a cobertura moral para o racismo.
Eles querem até isto.


O sr. acha que o tema racial deveria ser levado à pauta nas eleições? Por quem?
Quem poderia fazer isso, mas não gosta das coisas não convencionais, é
a Marina [Silva (PV)]. Mas ela não vai nada além das coisas que são
aceitáveis. Estive com ela no Senado e vi que tem caráter para
levantar a discussão. Mas falta alguma coisa.


Ela é melhor candidata na sua opinião?
Sem dúvida nenhuma. Tem qualidades e preparo. É de classe humilde,
apesar de ter aprendido a ler muito depois de adulta, tem qualidade.
Uma das primeiras solidariedades que tive no Senado foi a dela. Todo
mundo sabe das minhas posições em defesa da minha raça. E ela não teve
medo em vir me abraçar e se colocar à disposição para a ajuda que ela
pudesse dar. Não recebi dos outros nenhum apoio.


Como analisa os dois mandatos do governo Lula?
Teve atos que favoreceram os mais humildes, mas foi uma coisa medrosa,
não enfrentando os tabus brasileiros. O Lula, sendo humilde, não se
negou a dar as mãos às classes humildes, desprestigiadas. Mas foi
pouco ousado no geral. Não chegou ao fim das consequências. Nomeou o
[Gilberto] Gil ministro, mas tinha de colocar um lutador, um defensor
da causa negra. Não teve coragem de colocar um negro aguerrido na
linha de frente.


Obama é criticado por muitos por não fazer um discurso constante de
reafirmação de sua cor. Concorda com esse tipo de crítica?
Não. Isso é coisa secundária. A função dele é delicada e ele tem que
falar para os dois lados que votaram nele. Tem de falar para toda a
nação, composta de gente de várias raças, várias misturas. Está certo.
Não precisa estar a todo instante reafirmando sua origem. Está na
cara.
Ele falou que o Lula é o cara, mas ele também é o cara. Não precisa
ficar lembrando a todo momento que tem estas e estas origens.

Por//Mércia R. Batista

Fonte: Folha de São Paulo-14 de Junho 2010.

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