sexta-feira, 5 de novembro de 2010

República dos sindicalistas?

Ataques da mídia tradicional a pessoas com origem sindical que ocupam cargos públicos fazem parte de uma estratégia de disputa de espaço no Estado.
Por Nicolau Soares
No dia 15 de julho, o candidato do PSDB à presidência da República, José Serra, fez a seguinte declaração sobre o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante encontro com artistas e intelectuais no Rio de Janeiro: "O que vemos é uma partidarização frenética do Estado brasileiro. Está tudo aparelhado. Em 1964 falavam da República sindicalista do Jango. Brincadeira. Conheci todos no exílio. Eram anjinhos. Não tem nada a ver com o que acontece agora. Agora, tem uma República sindicalista. É uma elite sindical alinhada ao governo pelo dinheiro para fazer um trabalho político partidário".

O candidato não está sozinho nas declarações. Seu colega de partido e secretário de Educação de São Paulo Paulo Renato de Souza postou em seu blog o texto “‘República sindicalista’ ou ‘Cosa Nostra’?”, no qual comenta uma carta apócrifa que trazia acusações de tráfico de influência contra a filha do ministro da Fazenda Guido Mantega. O tucano vai direto ao que ele achava ser o “ponto”. “A ascensão de uma nova casta de sindicalistas a postos estratégicos introduziu na máquina estatal o que há de mais nefasto no velho sindicalismo, caracterizado pelo ‘peleguismo’: seus métodos escusos – entre eles a pura e simples chantagem, com vistas à ampliação de seus espaços.”

Os ataques tucanos encontraram eco no editorial “A `fábrica de dossiês` do PT”, publicado na edição de 10 de agosto do jornal O Estado de S. Paulo. A referida fabricação seria feita na Previ, fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, e “comandada pelos poderosos chefões do sindicalismo aboletados na estrutura do poder nacional”, nos termos do jornal. A denúncia foi feita à revista Veja por Geraldo Xavier Santiago, ex-diretor da Previ e do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro, que diz ter rompido em 2007 com Sérgio Rosa, ex-presidente do fundo e ex-sindicalista bancário apontado como “gerente” da tal fábrica – em mais uma denúncia feita por dissidente e acatada docilmente pela imprensa. O fundo seria um exemplo do “sindicalismo selvagem que Lula levou para dentro do governo” e que teria transposto para “a violência característica dos embates entre as máfias sindicais”.

Anos antes, em 30 de maio de 2002, o então publisher da Folha de S. Paulo, Octávio Frias de Oliveira, publicou artigo em que tentava prever os resultados de uma possível eleição de Lula, que já se desenhava nas pesquisas de opinião. À parte os diversos erros cometidos no exercício de futurologia, convém destacar o trecho final do artigo, em que Frias prevê problemas no governo por conta “(d)o acanhamento do personagem, formado na estreiteza do ambiente sindical e que nunca teve de tomar decisões de poder, nas quais não se agrada a uns sem desagradar a tantos outros.”

Os quatro ataques têm pontos em comum. Além de alvejarem direta ou indiretamente parte da esquerda, todos se referem negativamente ao movimento sindical. Para ser mais preciso, o alvo é a presença de sindicalistas em espaços e postos de poder no Estado ou em entidades de caráter público. Faz parte de uma tradição no comportamento da direita brasileira, que aflora principalmente nos momentos em que os movimentos de trabalhadores se encontram fortalecidos.

A expressão “República de sindicalistas” é um símbolo da ojeriza nutrida pelos conservadores contra os trabalhadores organizados. “O termo foi cunhado no cenário político brasileiro pré-1964 para tentar descaracterizar o projeto de sociedade que estava em curso. Isso faz parte da disputa política ideológica da sociedade”, avalia José Dari Krein, economista e diretor adjunto do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp. Originalmente cunhado por Carlos Lacerda, lendário líder da direitista União Democrática Nacional (UDN), o termo era uma acusação contra o então ministro do Trabalho João Goulart, do getulista Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), que estaria tramando uma conspiração com os trabalhadores para dominar o Estado brasileiro. O tema, com variações, seria retomado em meio às articulações para o golpe militar de 1964, que depôs o mesmo Goulart. É digno de nota que seja Serra, que esteve ao lado de Jango no famoso comício da Central do Brasil, em 1964, como presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), que resgate tal discurso, vestindo completamente o figurino direitista que lhe foi reservado nesta eleição por seu partido e pelas circunstâncias.

“É claro que o governo Lula tem uma maior presença de sindicalista, da mesma forma que outros setores estiveram mais representados em outros governos. Faz parte da base social do Partido dos Trabalhadores”, observa Krein. Então por que isso causa tanta estranheza? “A direita lança mão desse tipo de posicionamento para dizer que o trabalhador não tem competência para estar em cargos de comando”, resume Marcos Verlaine, analista político do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). “O movimento sindical tem um destaque maior porque a disputa entre capital e trabalho sempre tem mais repercussão. Discussões como a redução da jornada de trabalho são impactantes e quem puxa é o movimento sindical”, opina.

“Tanto naquele contexto como agora a frase tem um caráter estritamente ideológico. Expressa uma posição preconceituosa de um determinado segmento e visa estimular um ambiente de desconfiança e de medo em relação a algo que, mesmo não se esclarecendo muito bem, é vendido como muito ‘perigoso’”, resume Roberto Véras, doutor em Sociologia e professor da Universidade Federal de Campina Grande. “Nem antes, nem agora, tal discurso tem qualquer sustentação em uma preocupação genuína com a res publica. No auge das privatizações dos anos 1990, quando Chico de Oliveira denunciou que 1/3 das riquezas do país havia mudado de mãos, nenhum desses personagens se referiu ao perigo de se constituir no país uma ‘república de magnatas’”, ironiza.

Disputas sociais

Para Carlos Cordeiro, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro da CUT (Contraf), os ataques se concentram nos sindicalistas porque eles não escondem sua opção ideológica. “Sindicalista tem lado, e é o lado dos trabalhadores. Toda nossa política está voltada para as pessoas. Ao contrário, no modelo que vinha até o governo Fernando Henrique não havia espaço para o movimento sindical e todas as decisões eram voltadas para o mercado financeiro e industrial, para o grande capital”, avalia.

Um exemplo dessa disputa social é a sempre presente discussão sobre a independência do Banco Central (BC). Trazida ao Brasil no governo tucano, a medida era um dos dogmas da cartilha neoliberal seguida pelo presidente sociólogo. “As pessoas que governaram o país na gestão FHC sempre defenderam que a autoridade monetária deve ser independente dos partidos e da sociedade, que o cargo deveria ser ocupado por técnicos do mercado. Mas esses técnicos também têm lado, que é o lado do capital financeiro”, pondera Cordeiro.

Roberto Véras concorda. “Um dos principais recursos legitimadores do discurso conservador é o de procurar esconder o interesse político por trás do argumento técnico. Ora, se não é a sociedade, a partir de suas formas de representação e participação políticas, que define os rumos da nação em uma área tão estratégica como a da política monetária, a quem caberia tal prerrogativa? Aos ‘técnicos’? Do que se trata, senão de um esforço de eliminar a política dos negócios públicos (privatização!)?”, denuncia.

Para o sociólogo, no fundo dessa discussão se esconde uma tentativa da direita de bloquear a democratização do Estado brasileiro. “O governo Lula, apesar de muitos limites e situações contraditórias, possibilitou e ensejou formas diversas de arejamento da gestão pública, com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), o Fórum Nacional do Trabalho (FNT), as conferências ministeriais (Saúde, Educação, Formação Profissional, Cidades, Meio Ambiente, Emprego etc), a Mesa Nacional de Negociação Coletiva (MNNC), a promoção de conselhos de gestão, entre outras. A acusação de ‘aparelhamento do Estado’, por parte de sindicalistas e líderes de organizações populares, tem o propósito de evitar um mínimo aprofundamento dessa experiência”, resume.

“O governo Lula é muito mais de conciliação do que de rompimento entre os diversos interesses da sociedade. Busca compor o agronegócio com a agricultura familiar, por exemplo”, explica José Dari Krein. “Mesmo do ponto de vista da pauta das centrais sindicais, da regulação do trabalho, não se teve muitos avanços. A política para o salário mínimo é importante, mas não se avançou na redução da jornada, na reforma sindical, na ratificação da Convenção 158, por exemplo. Mas há uma diferença em relação ao FHC, que era exclusivamente de um lado só na questão do trabalho. Sua política era absolutamente voltada para flexibilização de direitos e redução da proteção social. Flexibilizar é aumentar o poder do empregador”, defende.

Atores sociais legítimos

Recentemente nomeado presidente da Brasilprev, braço do Banco do Brasil na área de previdência privada aberta, o ex-presidente da Previ Sérgio Rosa é um exemplo de atuação bem sucedida de sindicalistas em cargos de gerência. Rosa foi presidente da Confederação Nacional dos Bancários da CUT (CNB), antecessora da Contraf, e diretor do Sindicato dos Bancários de São Paulo. À frente da Previ, foi responsável por um patrimônio de R$ 142,6 bilhões e recebeu elogios de fontes insuspeitas, como o jornal Valor Econômico, que dedicou uma página inteira de sua edição de 11 de maio passado para um perfil de Rosa intitulado "O ex-sindicalista que redesenhou a Previ". Além de dar mais transparência ao fundo, a gestão de Rosa aumentou consideravelmente o patrimônio dos segurados: um salto de R$ 43 bilhões em 2003 para R$ 142,6 bilhões no balanço fechado de 2009, com rentabilidade de 28%, acumulando um superávit de R$ 44,2 bilhões.

Ele vê na atividade sindical aprendizados importantes para o desempenho de funções gerenciais. “Nos sindicatos você aprende e exercita a análise empresarial. Você não vai para uma negociação sem conhecer o setor em que trabalha, a sua categoria, a conjuntura econômica. Além disso, aprende a atividade de negociação, a sempre dialogar para buscar uma solução”, afirma. Rosa se defendeu das acusações feitas por Geraldo Santiago por meio de uma nota na qual nega a fabricação de dossiês, e afirma que “os escassos fatos citados estão relacionados a um processo normal de levantamento de informações e totalmente justificados e vinculados à natureza do trabalho e dos interesses da Previ naqueles momentos”.
Em entrevista à Fórum, completa: “os ataques à Previ são coisas completamente infundadas. Existem milhares de sindicatos no país e sua ação essencial é organizar os trabalhadores, função democrática e importante para melhorar a vida das pessoas. Nem de longe os sindicatos estão ligados a essa coisa de fazer dossiês.” Para Rosa, os ataques a sindicalistas estão ligados a conflitos por espaços na sociedade. “Estas disputas existem e às vezes se traduzem às vezes em desqualificação. Isso remete talvez a uma ideia muito antiga de que trabalhador não deve se meter em política, que sindicato deve se manter nas negociações salariais”, diz.
De trajetória emblemática no movimento sindical, o presidente do Conselho Nacional do SESI e Coordenador Geral do Fórum Nacional do Sistema S Jair Meneguelli é outro exemplo de gestor com origens sindicais. No cargo desde 2003, foi presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e primeiro presidente da CUT, eleito em 1983 no congresso de fundação da central. Comandou a entidade até 1994, quando foi eleito deputado federal pelo PT, se reelegendo em 1998.

Ele concorda com a importância da formação sindical para o desempenho de seu cargo atual. “A atuação em sindicato, ao contrário do que muita gente pensa, é extremamente diversificada, indo da questão salarial a um amplo catálogo de direitos sociais. Um dirigente sindical com a minha experiência ao longo do tempo terá discutido política econômica, política previdenciária, política de saúde, educação, moradia e desenvolvimento sustentável, além da questão da inclusão social”, sustenta. “O que difere, na minha formação, é que os dirigentes sindicais dos trabalhadores têm outra forma de assimilar e superar os desafios que necessariamente passam pela discussão diretamente nas fábricas, escritórios, campo etc. Essa foi a minha escola. O fato de a academia ser uma referência na produção do conhecimento não impede que outros saberes possam se desenvolver em outros espaços sociais. Não vejo conflito, mas uma relação complementar entre ambos”, defende.

Para o economista José Dari Krein, existe um preconceito da sociedade que diz que certos grupos detêm o monopólio da representação no Estado. “Os interesses dos trabalhadores também passam pelo Estado. São atores sociais legítimos que têm direito de se manifestar na sociedade e tomar posse do poder, como qualquer outro grupo social”, afirma. Marcos Verlaine concorda. “Já recebi ligações de jornalistas questionando se eu via algum problema em Paulinho (Paulo Pereira da Silva, PDT-SP) ser deputado federal e presidente da Força Sindical. Mas ninguém questiona que o Armando Monteiro Neto (PTB-PE) seja deputado e presidente da Confederação Nacional das Indústrias”, exemplifica. “As lideranças de cada setor têm seus partidos e querem disputar poder e postos institucionais, isso é legítimo”, diz.

Dados do Diap demonstram que a representação de empregados e patrões no Congresso Nacional ainda está longe de ser equilibrada. Segundo o levantamento, a bancada sindical na Câmara dos Deputados é de apenas 61 parlamentares, cerca de 12% do total. No Senado, são apenas sete pessoas com origem sindical entre 81 senadores. O contraste com a representação dos empresários é gritante: na última legislatura, eles elegeram 219 representantes na Câmara e 27 no Senado.

Símbolo

Se no Brasil ainda é vítima de preconceitos, em outros países a participação de trabalhadores é vista com mais naturalidade. Nos países europeus, por exemplo, os partidos social-democratas têm como característica a participação do movimento social organizado, alguns com forte presença de sindicalistas. “Há partidos cuja principal base é operária, como na Suécia e o Partido Trabalhista Inglês, que sempre foram muito vinculados a sindicatos”, conta Krein. “Na Suécia a participação de sindicalistas no parlamento é extremamente elevada. Do ponto de vista histórico, a participação do movimento dos trabalhadores na política foi fator fundamental para o avanço das proteções sociais. Esse tipo de avanço não é fruto de estudo técnico, mas de pressão popular”, completa.

Esse papel de transformação social também coube ao sindicalismo brasileiro, um dos protagonistas do processo de redemocratização do país. “No período recente de resistência à ditadura militar, os sindicatos foram as primeiras entidades civis com representatividade que desafiaram a repressão. Não há a menor dúvida da importância dos movimentos de trabalhadores nesse período”, lembra Sérgio Rosa.

Roberto Véras vê nesse protagonismo o principal motivo dos ataques conservadores. Para ele, o sindicalismo é visto pela elite como um símbolo do que ele chama de “campo democrático e popular”, que se projetou na cena pública brasileira na passagem dos anos 1970 aos 1980 e “configurou um outro parâmetro para pensarmos o país”. “Sobretudo, foi capaz de delimitar novas práticas sociais e políticas, e influenciar de modo importante a nova Constituição. Daí resultaram experiências muito significativas, a exemplo dos conselhos populares, dos conselhos de gestão, do Orçamento Participativo, entre outros”, afirma. “Se não tivéssemos tido tal experiência, teríamos sofrido os impactos da onda neo-conservadora, que nos atingiu na virada para a década de 1990, muito mais cedo e com muito maior contundência. Mirem-se nos casos do Chile, da Argentina e do Peru”, analisa.

Outra consequência direta da emergência desse fenômeno se expressou na chegada de Lula à presidência da República, em 2002. “Esse fato, por si só, já significou uma imensa fresta na armadura das classes dominantes. Sob tal prisma, pobre é sem valor, e ponto! A afirmação de Lula como um líder nacional e internacional, então, não estava nos planos de muita gente”, avalia. “É verdade que as conquistas estão aquém das necessidades (se consideramos os passivos social, político, ambiental) e das expectativas (de uma esquerda que sonhou mudanças mais fundas), mas também é verdade que as conquistas incomodam uma elite acostumada a não fazer concessões”, completa.

Nesse processo de disputa de poder, um ator social tem um papel fundamental: a mídia. E como demonstram as já citadas manifestações de Estadão, Folha e Veja, ela tem seu lado. “A mídia tem seus interesses e seguramente não são os nossos”, afirma Jorge Nazareno, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco, ligado à Força Sindical. “Em vários momentos, ela vai assumir um lado, com menor ou maior intensidade. O que lamentamos é qualquer postura que tente desqualificar uma pessoa que seja apta a ocupar um certo posto. Isso não quer dizer que a mídia não deva cumprir seu dever de fiscalizar, mas antes de se fazer uma denúncia é preciso que as coisas estejam devidamente apuradas. Muitas vezes se fazem denúncias que não se confirmam, mas o estrago está feito. É preciso muita responsabilidade”, cobra.

José Dari Krein afirma que houve no período recente uma extrema convergência da mídia na defesa do neoliberalismo e na crítica a qualquer tese de inclusão social mais enfática. “É uma coisa diferente do que acontece em outros países, em que você tem pluralidade nas posições políticas colocadas na mídia”, diz. Ele destaca o recente “Fórum Democracia e Liberdade de Expressão”, organizado pelo Instituto Milennium, que reuniu representantes dos principais veículos de comunicação do país. “Fiquei absolutamente escandalizado com as conclusões do seminário, em como as posições da grande mídia convergiam com um certo programa. A mídia faz parte do jogo político da sociedade e defende interesses, é natural que seja assim. O que não é natural é que tenha uma convergência tão grande na defesa de uma certa posição que não contempla a heterogeneidade da sociedade brasileira”, diz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário