terça-feira, 15 de março de 2011

Fala



A menina estava na escola, aprendendo a ser o que um dia seria plenamente:
ela mesma, maior - e mais sabida. Era tão alegre que até incomodava. Mas a alegria é assim, ruidosa, mesmo se a cultivamos
só dentro de nós, nos abafados do coração.
Então, o susto de uma lição nova. Estava sozinha
em casa. A mãe nas compras. O pai chegou. Ela correu,
feliz, e se pendurou no pescoço dele. Mas estranhamente,
ele não a soltou. Não. E depois que o fez, ela se viu
como uma boneca quebrada. E aí aprendeu que a dor na memória na
memória arde mais do que no corpo.
A mãe não notou a verdade em seu rosto, nem ninguém na escola, em
parte por miopia, em parte porque a alegria
tem muitos disfarces. Achavam que a menina era a mesma.
Só andava menos falante.
Quando o pai chegava em casa sorrindo, ou entre outras pessoas, agia como antes, e ela emudecia.
Era o seu avesso: uma menina na calada do dia! E aí
aprendeu que o silêncio era o seu medo no último volume.
Ele se repetiu outras vezes nela, esmagando,
aos poucos, o que restavam de sua incômoda alegria.
E já quase sem voz, a menina aprendeu o que era a solidão.
Assim estava, tão dolorida, tão sem esperança...
quando, de repente, se inflou de coragem - uma coragem
que só uma menina triste é capaz de ter. E, então mostrou
a todos que reaprendera a primeira e mais difícil lição.
Reaprendera a falar. E falou. Tudo.

João Anzanello Carrascoza,professor da USP e, autor deste conto.

por Carolina Albuquerque

2 comentários:

  1. e como falar é um aprendizado longo e difícil
    existe um livro chamado "quando estou só" (não me lembro o autor) que ensina as crianças a se protegerem de abusos...
    parece algo muito distante mas crianças são molestadas todos os dias e pelas pessoas que elas mais confiam e por isso Falar sobre o que elas sofreram se torna algo improvável, e mais do que no corpo, a memória grava e se torna uma agulha que machuca a cada instante, e os sinais de que algo estar errado não é percebido pelos os que lhe rodeiam

    parabéns João Anzanello Carrascoza o seu conto é mais do que real

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  2. É a parte dificil dá vida é termos a sencibilidade de ver que alguém não diz nada porque quer nos dizer tudo que está sofrendo é um dilema constante e principalmente com as crianças que nem sempre são levadas a serio como precisam.

    Gládia

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