O artigo do The Economist sobre a frágil criminalização do racismo no Brasil já é um indício importante de que o mundo começa a desconfiar de que o país é negligente em relação a esta questão. Em outras palavras, não somente aqui dentro, mas também lá fora, a fantasia da democracia racial não se sustenta mais.
Já escrevemos sobre isso, mas não custa repassar a hipótese de que, em relação ao racismo, já vivemos três fases, e precisamos caminhar para a quarta.
A primeira foi a prática do racismo de Estado, durante a escravidão (e mesmo depois da Abolição), quando a discriminação e a violência eram “legitimadas em lei” (ainda que pese a redundância). Naquele momento, o tráfico e a exploração (econônmica, física, sexual) de crianças e mulheres, além dos próprios homens, era vista como natural à sociedade.
Tratar negros como mercadoria, ou tratar religiões afros como casos de polícia enquadram-se nesta etapa das relações raciais brasileiras. Pode-se dizer que esta fase está superada? De um modo geral, sim, mas há ainda traumáticos resquícios de ação discriminatória do Estado em relação aos negros, principalmente (vide a violência policial contra comunidades majoritariamente negras”).
unda fase, acentuada na primeira metade do século XX, foi da extinção paulatina do racismo de estado (processo que ainda se completa), mas acompanhada de um fenômeno interessante: o da negação sistemática da existência do racismo no país. Como aquela pessoa que, constrangida com a doença, prefere escondê-la dos vizinhos. A negação também era uma maneira de manter o status quo, visto que assumir esta patologia social seria a forma mais imediata de começar a combatê-la.Por mais que pareça surrealista (um país com passado escravagista transformar-se em democracia racial plena de um dia para outro), parte (minoritária) da opinião pública ainda vocaliza este discurso.
A terceira fase, já pós-60, foi o reconhecimento do racismo no Brasil. Demorou bastante e ainda hoje há quem duvide que exista (como algumas pessoas também duvidam que o homem foi à Lua). Os anos 90 foram importantíssimos, pois foi nesta década que a questão começou a ser discutida mais abertamente, e boa parte da opinião público abdiciou do silêncio constrangedor sobre a questão. Nos 30 anos precedentes (décadas de 60,70 e 80), a questão ganhou a academia, organizações sociais, mas não se expandiu até a opinião pública
A quarta fase está por vir e acredito que seja o legado deste século XXI: considerado como uma patologia social (portanto, não uma patologia do indivíduo, ou do “branco”, ou do “negro”), e como crime, há forte resistência à punição dos atos de racismo. E isso tem a ver com uma terceira fase ainda resistente…
O Brasil entrará na quarta fase das relações raciais, quando virmos o país não ter vergonha de punir, seja com prisão, seja com prestações de serviço comunitários, seja com multas e indenizações, a depender da gravidade…não ter vergonha de punir aquele (independente da cor da pele, ou da origem social) que ousar cometer o crime do racismo.
A criminalização do racismo, letra quase-morta da lei, deve virar realidade, e deve ser vista pela sociedade como uma lei de proteção à cidadania e ao republicanismo.
Ao contrário do que pode pensar o senso comum, a condenação pelo crime de racismo não é uma forma de punir brancos. Há racismo também de negros contra negros, mestiços contra negros, brancos e mestiços, negros contra brancos… O racismo mutas vezes se esconde por trás de preconceitos regionais, estéticos, ou de classe e de religião.
E aí é a grande discussão do momento: como tratar judicialmente o crime de racismo “como crime”. Porque, até hoje, esta criminalização vem sendo “escondida” por sentenças atenuantes, como a tipificação do racismo no máximo como injúria.
Há obstáculos para esta plena “criminalização do racismo”. Uma delas, a prática muito comum na mídia de oferecer, de forma instantãnea, atenuantes para o crime do racismo. Não há uma denúncia de racismo, que não venha acompanhada de vozes em defesa do racista. Não do racismo. Mas tentativas de justificativas do ato. O caso do restaurante paulista foi bem sintomático: razões foram procuradas até no inconsciente daqueles que ofenderam o menino.
O país precisa entender que o racismo é “social”, não um “desvio psicológico” de uns e outros, especificidade de uma classe ou outra, de uma etnia ou outra. Não devemos temer um “clima de acertos de conta” com a criminalização do racismo. Devemos considerá-la normal, uma prova de maturidade em nossa sociedade.
Diremos que, do ponto de vista jurídico, o medo da punição ao racismo coloca o país na pré-modernidade.
É hora de acertar os ponteiros.
Por Weden
Postado por Érika Catarina
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