sábado, 25 de fevereiro de 2012

NOTA SOBRE MORTES DE JOVENS KARAJÁ


A equipe do Museu Antropológico e da Faculdade de Ciências Sociais que realizou pesquisa etnográfica sobre as bonecas Karajá, recentemente registradas como patrimônio cultural imaterial brasileiro, vem a público manifestar sua preocupação com as recentes mortes de jovens Karajá, ocorridas especialmente na aldeia Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, TO.
Consideramos a situação como de extrema gravidade, por se tratar de sucessivos suicídios de jovens do sexo masculino de até 22 anos, em geral, associados ao uso de bebidas alcoólicas e também de casos suspeitos de consumo de outras drogas, como o crack. Segundo informes de uma liderança indígena de Santa Isabel do Morro e de familiares das vítimas, nos últimos meses, sete jovens morreram depois de se enforcarem, além de duas outras tentativas.
Entendemos que é urgente a constituição de uma força-tarefa composta por integrantes da Associação Brasileira de Antropologia, FUNAI, FUNASA, Ministério Público, Ministério da Saúde, Ministério dos Esportes, em parceria com as lideranças tradicionais e de jovens indígenas que atuam nas aldeias – como é o caso dos professores e dos agentes de saúde – para juntos discutirem e proporem medidas contínuas a curto, médio e longo prazos.
Esta situação, de quase calamidade pública, interliga complexos aspectos internos da sociedade Karajá aos problemas decorrentes do contato interétnico. Acreditamos que as discussões e propostas devem considerar as dimensões mais amplas da saúde, da sustentabilidade econômica e de valorização dos saberes tradicionais do povo Iny, bem como as motivações, habilidades e competências das jovens lideranças.
A grave situação demanda a implementação imediata de medidas de apoio às famílias atingidas com a constituição de uma equipe multidisciplinar de saúde que possa fazer um acompanhamento direto das pessoas envolvidas.
Para além dessas medidas emergenciais, entendemos que é preciso implementar programas de inclusão social, baseados na valorização da cultura Karajá e dos saberes tradicionais do povo Iny, e que levem em conta as motivações, habilidades e competências de lideranças e profissionais jovens indígenas que atuam nas aldeias, como é o caso dos professores e dos agentes de saúde. Santa Isabel do Morro é uma das aldeias mais populosas e tradicionais do povo Karajá, tendo hoje uma população aproximada de 700 habitantes. Juntamente com Fontoura é uma referência para as demais aldeias, pela efervescência das suas práticas rituais, domínio da língua materna por todas as gerações, existência de exímios especialistas em diversas modalidades de trabalho artístico e artesanal, conhecimentos refinados da cosmologia Karajá, do território e de seus recursos naturais.
É uma aldeia reconhecida pela quantidade de anciãos detentores de uma sabedoria ancestral e de um profundo conhecimento histórico sobre a trajetória do seu povo e de sua cosmologia, os quais são, muitas vezes, convidados a colaborar com outras aldeias Karajá como especialistas em programas de valorização da cultura e da identidade Karajá.
Por um lado, existe um potencial educativo na sabedora ancestral dos anciãos, geralmente comunicada e transmitida pelas práticas rituais, pelas narrativas míticas, pelos exemplos cotidianos e convívio entre as gerações. Por outro, existem nestas comunidades brilhantes jovens, que dominam o saber escolar, atuam em organizações indígenas não-governamentais e participam de programas de formação universitária e que são capazes de transitar entre o universo Karajá e o mundo externo assim como de incorporar inovações tendo como base suas referências culturais.
Sugerimos também que as instituições governamentais, integrantes dessa força tarefa, viabilizem financeira e administrativamente:
1.  Políticas de apoio a projetos que contemplem as diferentes modalidades de trabalho artesanal envolvendo a participação dos jovens, não só como principais responsáveis pela continuidade desses saberes e práticas no futuro, mas também como possibilidade de inclusão desses jovens, preocupação recorrentemente observada nas falas de lideranças e famílias Karajá. As atividades artesanais são de fundamental importância para as comunidades Karajá, pois além de representarem um significativo complemento de renda familiar, são também utilizadas como instrumentos educativos na socialização de jovens e crianças, bem como na busca de legitimidade política e de reafirmação da identidade Inў.
2.  Programas esportivos e de lazer com ênfase nas modalidades tradicionais próprias do contexto sociocultural Karajá, tais como as lutas corporais praticadas em competições associadas às cerimônia do Hetohokў, ritual de iniciação dos meninos à vida adulta; além de vários outros jogos e brincadeiras praticados cotidianamente em suas comunidades, como o futebol e o voleibol;
3.  Ações de incentivo às atividades produtivas baseadas no conhecimento, uso e gestão sustentada dos recursos naturais disponíveis no próprio território Karajá. O turismo regional baseado na pesca e no uso das praias do rio Araguaia, que ocorre anualmente na região, também deve ser levado em conta, uma vez que agrava a faceta destrutiva do contato interétnico contribuindo para o aumento do consumo de bebidas alcoólicas, de drogas e de contágios por doenças sexualmente transmissíveis e acirrando os conflitos internos às aldeias, ao mesmo tempo em que também contribui para a ampliação da demanda por produtos artesanais confeccionados pelos Karajá e para o incremento da renda das famílias.
Um dos pontos fundamentais a ser pensado por esta força-tarefa é a constituição de um grupo de trabalho interdisciplinar, que possa a médio prazo produzir um estudo sistemático sobre as experiências de alcoolismo e suicídio de jovens Karajá. Somente a compreensão deste fenômeno, ainda não aprofundado no campo da antropologia, poderá subsidiar ações que a médio prazovenham contribuir para a atenuação do sofrimento ora vivenciado pelo povo Karajá.
Finalmente, considerando a nossa experiência recente de trabalho e interlocução com a aldeia Santa Isabel do Morro, especialmente com as famílias das ceramistas, em nome do Museu Antropológico, da Faculdade de Ciências Sociais da UFG e da equipe que executou o projeto Bonecas Karajá: arte, memória e identidade indígena no Araguaia, ressaltamos a nossa solidariedade às famílias desta aldeia. Também reafirmamos o nosso compromisso com o povo Karajá, ao mesmo tempo em que nos colocamos à disposição para contribuir com as discussões e possíveis projetos e ações voltados para a busca de solução dos problemas ora enfrentados por ele.

Edna Luisa de Melo Taveira
Manuel Ferreira Lima Filho
Nei Clara de Lima
Patrícia de Mendonça Rodrigues
Rosani Moreira Leitão
Telma Camargo da Silva

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