sexta-feira, 4 de maio de 2012

Pataxó Hã Hã Hãe: breve crônica de uma injustiça



Faz tempo que a região dos municípios de Pau-Brasil, Itajú do Colônia e Camacan é palco de constantes disputas e conflitos em relação às terras do Posto Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu. Até a criação do Posto, aquela área era habitada pelos povos Pataxós Hã Hã Hãe, Kamakã, Baenã e Tupinambá, entre outros, como atestam os relatórios do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (IHGB) feitos nas décadas de 1920 e 1930.

Em 1927, o Governo Federal criou o Posto Indígena numa área bem menor da que os índios ocupavam até então. De acordo com o relatório feito pelo IHGB em 13 de maio de 1925, a extensão do território indígena "ainda não ocupado pelas plantações de cacau" era de "cerca de 300 léguas". Porém, o mesmo relatório solicitou apenas 50 léguas para a população indígena.

Uma das justificativas para a criação do posto foi proteger os índios dos constantes massacres que sofriam. Esta situação foi relatada em carta enviada pelo missionário Frei Bento de Sousa para o Diretor de Serviço de Proteção aos Índios, em 28 de março de 1924. Nela, o clérigo relata:

Na qualidade de missionário católico e brasileiro, peço humildemente ao Sr. Diretor que tome providências acerca destes pobres brasileiros, que infelizmente qualquer civilizado pode invadir-lhe os terrenos, expulsá-los à bala. Chamar o engenheiro para medir as terras roubadas e afinal comprá-las legalmente ao governo. O pobre caboclo não repele o invasor, foge mais para a mata. Acessados pela fome, às vezes roubam mandiocas ou matam alguma res. Tem se matado índios no Rio Pardo como bichos. Houve quem levasse roupas de varíolas e as deixasse em lugares onde os caboclos as achassem, para os destruir. De fato, viam-se mais tarde os urubus baixando sobre as matas (SOUSA, 28 de março de 1924)

Vale ponderarmos que: ao invés de impedir o massacre feito pelos que estavam ocupando o território e expulsando as comunidades indígenas da região, o caminho adotado foi a redução territorial indígena. Assim, perguntamos: por que o governo não expulsou, então, os invasores, preservando o território indígena em suas dimensões? Com a criação do Posto, mesmo em sua dimensão reduzida, aquelas terras seriam de usufruto da população indígena local.

Contudo, desde a instalação do Posto, o então Serviço de Proteção ao Índio (SPI) iniciou o arrendamento irregular daquelas terras para posseiros e particulares. O governo da Bahia, por sua vez, emitiu títulos sobre os terrenos — emissão irregular, porque as mesmas pertenciam ao Posto Indígena. Esta situação tem criado um quadro de constantes práticas de violência e usurpação dos direitos das comunidades indígenas.

Acreditamos que o Supremo Tribunal Federal (STF) precisa julgar com urgência a nulidade dos títulos emitidos de forma irregular. A ação de retomada das terras feitas pela comunidade indígena é uma tentativa de apressar o julgamento e obter de volta o que lhe é de direito. Por isso, dizem: "não é invasão porque estamos retomando o que é nosso".

Vale lembrar que foi no sentido de cobrar agilidade no julgamento da nulidade dos títulos que em 1997 o índio Galdino Jesus dos Santos estava em Brasília, onde foi queimado vivo. Assim como ele, outras pessoas já morreram por causa deste conflito e o pior é que as mortes talvez continuem. Veja o relato a seguir feito pela Comunidade Pataxó Hã Hã Hãe sobre o dia 21/04/2012, quando realizavam um ato em repúdio à violência na área:

Estranhamente, assim que as pessoas (indígenas e os que apoiam a luta deste povo) desciam dos veículos eram revistadas pelos policiais que, tão logo vasculharam nossos pertences, se evadiram da área e nos deixaram entregues à própria sorte. Ato contínuo, os pistoleiros apareceram em muitos veículos, tais como motocicletas, caminhonetes e carros de passeio, além dos que apareceram a pé, saindo dos pastos, e nos atacaram fortemente. Os funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai) que estavam nos acompanhando nos ajudaram com os seus veículos e, juntamente com os veículos da própria comunidade, demos fuga para nossas mulheres e crianças e a todos os homens que ainda encontraram espaço nos veículos.

Todos os demais tiveram que fugir pelos pastos, correndo para salvar suas vidas, sob uma verdadeira chuva de balas. Os pistoleiros nos perseguiram pelas estradas, em seus veículos, chegando ao absurdo da impressão de que até mesmo os policiais estariam nos escoltando, à frente dos pistoleiros, para fora de nossa terra. As pessoas que ficaram para trás, nos pastos, foram sendo localizadas, por celular, enquanto subiam as serras para nos contatar. Elas foram sendo instruídas a seguir para locais onde fomos podendo resgatá-las. Ainda temos pessoas desaparecidas e sem nos contatar: não sabemos se ainda estão vivas.

Denunciamos as polícias Federal, Militar e Civil, primeiramente por nos terem garantido que das áreas de onde saíram os veículos dos pistoleiros não haveria nenhum homem armado; denunciamos por haverem nos revistado e constatado que não estaríamos em condições de reagir a qualquer ataque; e, finalmente, por terem se evadido do local sem nos socorrer, enquanto estávamos sob forte ataque.

Dado ao absurdo desta situação, solicitamos a todas as entidades que nos apoiam, aos nossos amigos e às pessoas simpatizantes de nossa causa que nos ajudem a divulgar esta denúncia. (Posto Indígena Caramuru Catarina Paraguaçu, 22 de abril de 2012. Comunidade Pataxó Hã Hã Hãe)

Cabe à Justiça Brasileira uma resolução imediata e definitiva deste quadro de disputa. Em 26 de setembro 2010 já ocorreu um primeiro julgamento: "os títulos imobiliários e os registros cartorários implementados em benefícios dos réus (posseiros e arrendatários) e seus antecessores são completamente nulos".

Somente com a manutenção deste julgamento, a justiça será feita e a situação irá começar a se acalmar. Portanto, pensamos que, atualmente, grande parte da culpa pelo conflito é a demora no julgamento da nulidade dos títulos emitidos irregularmente sobre as terras indígenas Pataxó Hã Hã Hãe.

Carlos José Ferreira dos Santos é professor da Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus, Bahia.

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