quinta-feira, 5 de julho de 2012

Mulheres de renome, mulheres renomeadas: as 'outras' da Antropologia




Resenha de: Luciana Gruppelli Loponte
Universidade de Santa Cruz do Sul


Antropólogas & Antropologia. 
Corrêa, Mariza. 
Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003. 278 p.


Mesmo que não pertençamos à tradição do campo de saber chamado Antropologia, como é meu caso, o livro nos captura, principalmente para quem tem algum interesse sobre questões que envolvem as relações de gênero. A autora do livro traz à tona as histórias de três mulheres que ousaram de alguma forma destacarem-se em uma área (como tantas outras) de domínio quase exclusivo de homens. São elas, como define a própria Mariza Corrêa: "a ornitóloga [Emilia Snethlage] que deveria cair cativa do canto de um pássaro sedutor; a aventureira [Leolinda Daltro] que deveria se aventurar pelos sertões, de fato à procura de um homem, ou a diretora de museu [Heloisa Alberto Torres] que, solteira, deveria viajar com uma companhia masculina - jovem e inepta, mas masculina, de acordo com os relatos, históricos ou romanceados, de suas trajetórias..." (p. 14). O tom irônico desse trecho perpassa boa parte do livro, nos instigando a pensar sobre como essas vidas de mulheres foram narradas, como a linguagem que as nomeia está envolta de expectativas quanto aos comportamentos ideais para os gêneros. Um homem e uma mulher são narrados da mesma maneira? O que fazem essas mulheres nesse espaço público, espaço masculino por excelência? Onde elas 'deveriam' estar? Uma mulher sozinha pode ser uma antropóloga, ou ela pode apenas ser uma 'parceira etnográfica' de um homem?
A questão da linguagem, tanto nos relatos históricos como literários trazidos pela autora sobre essas 'mulheres excepcionais', atravessa todo o livro. A linguagem que narra essas mulheres está, sem dúvida, repleta de questões de gênero e sexualidade. É a sexualidade que está sempre em jogo quando se fala de mulheres que se destacam em um espaço no qual, segundo uma determinada ótica masculina, elas não 'deveriam' estar. Se elas ocupam esse espaço, deve haver outras razões que não exatamente as relativas a sua competência profissional. Se duvidamos de que a linguagem inscreve-se ou corporifica as diferenças de gênero, basta pensarmos nas definições de 'homem público' e 'mulher pública' em seu sentido mais comum. Ou ainda, como lembra Mariza Corrêa, no sentido que é dado aos homens antropólogos, denominados elogiosamente como 'aventureiros' em contraposição ao sentido negativo e de forte conotação sexual atribuído às mulheres antropólogas 'aventureiras', com um certo tom de desconfiança diante das reais intenções dessas mulheres que se aventuram em florestas ou entre os índios.
Como afirma a autora, a análise das narrativas sobre essas mulheres "parece explicitar que a sociedade é regida por lógicas distintas, que comandam o comportamento feminino de modo diferente do que comandam o comportamento masculino" (p. 15). Na história da Antropologia, como em outros campos de saber como a arte, por exemplo, falar de personagens masculinas difere-se radicalmente de como se fala das personagens femininas. O que vale para os homens nem sempre tem o mesmo peso para as mulheres.
O que é um nome?, pergunta Mariza Corrêa. Quem pode, afinal, ter um nome? Sem dúvida, ninguém desconhece a existência de Claude Lévi-Strauss, mas quem já ouviu falar de Dina Lévi-Strauss? Mulheres ao pé da página, a elas restam as notas de rodapé, escondidas sob o nome dos maridos. Mulheres renomeadas com o nome masculino. Dina e tantas outras aparecem para a história como esposas de, como apêndices de alguém. Apesar de estarem em campo com seus maridos antropólogos, e de serem inestimáveis auxiliares de pesquisa, seus nomes desaparecem à sombra do renome masculino. Renome pode significar um nome famoso ou um segundo nome, como os que adquirem essas mulheres ao se casarem, abdicando o seu próprio nome e, talvez, a sua própria identidade: "Ao serem assim renomeadas essas mulheres tornam-se então esposas em primeiro lugar - e são assim também consideradas" (p. 22).
Mulheres sozinhas, com seu nome próprio ou de alguma forma em busca de renome, enfrentavam muitas dificuldades para fazer pesquisa de campo na época aqui analisada, entre os finais do século 19 e os anos 40 do século 20. Ou elas eram legitimadas por fazerem parte da equipe profissional de seus maridos, contentando-se em ser dublês de pesquisadoras, ou eram malvistas pelos demais pesquisadores, na maioria homens.
Mariza Corrêa traz para essa discussão sobre gênero a questão da identidade, valendo-se principalmente das observações agudas de Donna Haraway. Qual a identidade dessas mulheres que assumem o nome do outro? Afirmar uma identidade, e uma identidade feminina, parece ser um contra-senso em um tempo de identidades fragmentadas. A identidade feminina, unificada, que tenha lugar em um 'nós' totalizador ou em uma coletividade homogênea, é pura ilusão. Não há uma essência feminina a ser buscada nos múltiplos modos de ser mulher: brancas, negras, índias, de classe média, de classe baixa, donas de casa, antropólogas, artistas ou tantos outros qualificativos que queiramos dar. Mas, quando se afirma uma identidade, é de lutas que se está tratando, como afirma Mariza Corrêa. Para Donna Haraway, essa seria uma luta por afinidades e não identidades. A afinidade supõe relação e não o mesmo, como o termo identidade sugeriria. Sem dúvida, o livro Antropologia & Antropólogas inscreve-se nessa luta por afinidades de mulheres de renome, mulheres renomeadas, mulheres sem nome próprio, mulheres ao pé da página. Aqui, é a Antropologia o cenário principal, mas podemos pensar, a partir daí, na quase invisibilidade das mulheres em qualquer outra área de conhecimento. Dessa forma, um livro como esse extrapola as discussões específicas da Antropologia, para inserir-se em uma discussão mais ampliada sobre as relações de gênero.
A questão da linguagem sempre foi uma questão importante para as estudiosas feministas. A problematização sobre o masculino genérico predominante na língua portuguesa, por exemplo, chama a atenção para a arbitrariedade e parcialidade da língua que usamos cotidianamente. Muitas vezes, no entanto, as pesquisadoras e os pesquisadores encontram soluções lingüísticas não muito agradáveis à leitura: 'os' e 'as' entre parênteses, o uso do sinal @ (pesquisador@s, por exemplo), que aparentaria uma certa neutralidade, ou até a alternância entre feminino e masculino durante o texto. Se temos certeza de que a linguagem deve ser de algum modo problematizada, porque nela se inscrevem as lutas de sentido e as diferenças de gênero, há muitas dúvidas ainda sobre qual a melhor maneira de expressar essa questão na construção de um texto. Mariza Côrrea trata essa questão de um modo sutil quando, por exemplo, faz um jogo de palavras com as palavras masculina/feminino ou feminina/masculino. Se nas oposições binárias mais correntes (masculino/feminino, branco/negro, rico/pobre, etc.) há quase sempre um peso maior no primeiro elemento, a inversão dessa polaridade e da própria flexão de gênero desestabiliza a leitura, nos fazendo pensar na construção cultural desses binarismos. As fronteiras entre essas categorias, aparentemente estanques, borram-se em um discurso que às vezes é andrógino, aparentemente neutro, mas que, ora enaltece as qualidades 'masculinas' dessas mulheres, ora desprestigia as suas qualidades ditas 'femininas':
Colocando-se ao lado de seus colegas profissionais, no entanto, e analisando suas trajetórias no contexto da época de cada uma, começam a emergir definições de feminina e de masculino explicitadas em disputas pelo poder, pelo prestígio ou por privilégios de vários tipos e pela atribuição a elas de um estatuto ambíguo, como se tratasse de seres andróginos a quem é preciso conjurar, desmentir, redefinir tão logo essa atribuição se expresse nos discursos a respeito de seus feitos científicos. Movimento de estranhamento, primeiro (que faz essa mulher num grupo de homens? Deve ser homem...), de re-alocação, em seguida (mas vejam que belo chapéu... feminino), logo de desqualificação (sendo mulher... não poderia ser cientista - ou vice-versa.) (p. 30).1
O livro mapeia a trajetória dessas mulheres exemplares, e a luta de produção de sentido em torno do que elas faziam, principalmente pelos seus interlocutores masculinos, procurando situá-las no contexto da atuação de outras mulheres contemporâneas na Antropologia em outros lugares do mundo. Essa luta semântica e política manifesta-se em termos literários e também nos relatos históricos sobre essas personagens: a naturalista Emilia Snethlage, a sertanista Leolinda Daltro e a pesquisadora de museu Heloisa Alberto Torres. A pergunta central, na análise dessas trajetórias, é: que diferença há em conjugar uma carreira no feminino? Há diferenças, sim, e isso é demonstrado ao longo de todo o livro. Diferenças essas que, via de regra, desvalorizam o trabalho feito por mulheres.
Outras questões emergem nos demais capítulos, como o entrelaçamento entre raça e gênero na política e teoria antropológica, e a atuação de outras mulheres na constituição da história da Antropologia. O livro Antropólogas & Antropologia demonstra um exaustivo trabalho de pesquisa, que se manifesta em detalhes minuciosos (que incluem notas extensas de cunho explicativo e teórico) sobre a vida dessas mulheres e as narrativas a elas associadas, nos fazendo ser capturadas por tais trajetórias e pela forma de narrar da própria autora. O livro (fugindo de qualquer tipo de vitimização ou essencialismo das mulheres) é, sem dúvida, uma importante contribuição para os estudos de gênero no Brasil.


1 Esses qualificativos que colocam em dúvida a competência profissional das mulheres não é uma exclusividade do campo da Antropologia. Ver, por exemplo, os comentários misóginos de artistas de renome sobre mulheres artistas. O artista francês Renoir teria dito: "Considero as escritoras, advogadas e políticas - como Georges Sand, Madame Adam e outras - como monstros, como terneiros de cinco patas [...] A mulher artista é sinceramente ridícula". Ou ainda Degas, sobre a artista impressionista americana Mary Cassat: "Não posso admitir que uma mulher desenhe tão bem!" (Citados por PORQUERES, Bea. "Reconstruir uma tradición: las artistas em el mundo ocidental". Cuadernos Inacabados, Madrid: Horas y Horas, n. 13, 1994.


Por: Carolina Albuquerque

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