segunda-feira, 4 de novembro de 2013

SOBRE UMA DESLUMBRANTE LUZ EM LAMPIÃO

Por W. J. Solha

Lembro-me do alvoroço quando se mostrou ao mundo, em 1994, o resultado da 
restauração dos afrescos de Miguelângelo na Capela Sistina. Em lugar de se ver 
confirmada uma pintura “séria”, quase tão tenebrista quanto a de Caravaggio, Ribera, 
Rembrandt ou La Tour, o que se viu foi algo tão cheio de tons róseos e azuis celestes, 
quanto uma criação de... Disney! 

Exatamente o mesmo acontece agora – em âmbito nacional – ao se ver a noção que se 
tinha da aparência dos cangaceiros totalmente alterada pela revisão radical produzida 
pelo belíssimo “Estrelas de Couro – A Estética do Cangaço”, de Frederico 
Pernambucano de Mello, magnificamente editado pela Escrituras, de São Paulo. O 
volume provocou tão justificado entusiasmo em Ariano Suassuna, que ele declarou, no 
seu prefácio, que se não fosse escritor e palhaço frustrado, “não seria outro, senão 
Estrelas de Couro o livro que gostaria de ter escrito”. 

Lampião também me fascina. Em meu romance “Relato de Prócula” fiz – a certa altura - 
uma adaptação de velho ensaio meu – “Se Jesus foi a Luz do Mundo, Virgulino foi 
Lampião” – onde enumero uma série de Coincidências Significativas entre o Rex 
Ivdeorvm e o Rei do Cangaço. Da observação extasiada desse personagem me veio a 
sensação, quando vi o documentário sobre ele, feito por Benjamim Abrahão, de que o 
cinema de ficção jamais captou o espírito do cangaço. Agora, ao ler e VER a obra de 
Frederico Pernambucano, compreendi o motivo disso e descobri que não estava sozinho 
em meu descontentamento. 

- Curioso – diz ele - que essas cores, esse luxo, essa variedade individual no plano 
estético não fosse captada pelos grandes pintores contemporâneos da fase áurea do 
cangaço, dos anos 20 e 30, a exemplo de um Portinari, (...) um Vicente do Rêgo 
Monteiro, um Santa Rosa, um Lula Cardoso Ayres. 
(...) 

- Ainda está pra surgir quem consiga combinar na tela – não se exclua aqui a de cinema 
– o ethos e o ethnos dessas comunidades móveis de irredentos brasileiros chegados a 
dias tão recentes... 

A maravilhosa, farta ilustração do volume especial da Escrituras (livro), é justamente a 
“restauração” da verdadeira imagem do cangaço. O impacto que me causou foi o 
mesmo que sentiu um jornalista ao ver o bando entrando em sua cidade, Tucano, Bahia, 
em 1928: 

- Vinham tão ornamentados e ataviados de cores berrantes que mais pareciam 
fantasiados para um carnaval. 

Eis aí: Disney, Fantasia, Surpresa. 

E veja o que deduz Clarival Valladares, citado no livro: 

- Ao invés de procurar camuflagem para a proteção do combatente, ele é adornado de 
espelhos, moedas, botões e recortes multicores. (...) Lembremo-nos, entretanto, que no 
entendimento do comportamento arcaico, o homem está ligado e dependente ao 
sobrenatural, em nome do qual ele exerce uma missão, lidera um grupo, desafia porque 
se acredita protegido e inviolável e, de fato, desligado do componente da morte. 
Frederico Pernambucano completa: 

- O Símbolo opõe mistério concebido por criação e decifração, a mistério natural. 
Espécie de similia similibus curantur do espírito, mistério bom contra mistério ruim. 
E vemos em seu livro o belo crucifixo de Lampião, que pertencera à baronesa de Água 
Branca, nas Alagoas. Vemos o Coração-de-Jesus numa medalha de ouro, de Maria 
Bonita. Vemos fotos das orações da Pedra Cristalina, a do Santo Lenho, a de Santo 
Agostinho e a de Nosso Senhor Jesus Cristo, que Virgulino carregava por toda parte. 
Vemos um “Signo de Salomão e suas implicações”. Vemos Lampião e todo o seu bando 
de joelhos, rezando na caatinga. E a essa inesperada sensibilidade, somo uns versos de 
que nunca me esqueci, pela beleza e ternura extraordinárias, que esse bandoleiro fora do 
comum criou para incluir na “Mulé Rendêra”: 

Eu estando mais meu mano, 
Meu mano estando mais eu, 
Só penso que o céu é perto 
E o largo do mundo é meu. 

Eu agora me lembrei 
De meu irmão Ferreirinha: 
A minha rede era dele, 
A rede dele era minha, 
Eu rezava o Padre Nosso,
E ele a Salve Rainha... 

E quem inseria tanta cor no bando?


Pernambucano conta: 

- É perceptível a satisfação com que Lampião se deixa flagrar pela objetiva de Abrahão 
no ato da costura, em 1936, debruçado sobre a máquina Singer de mesa, a mão cheia de 
anéis a conduzir o veio da engenhoca, dando ritmo ao bordado. Cena rara de riso em 
quem até o sorriso pouco estampava. 
 (...) 

- Lampião distribuía candeeiros aos cabras habilitados no ofício e se isolava na 
confecção de cartucheiras, bandoleiras, correias de cantil, bainhas de pistola e perneira, 
além de testeiras e barbicachos traseiros para os chapéus. 

E é assim que, de repente, associo Virgulino ao Arthur Bispo do Rosário, o grande 
artista doido, interno de um hospício carioca e contemporâneo de Lampião, que também 
se esmerava nos infindáveis bordados nas roupas e mantos complexos e hoje famosos 
que criava, o mais estupendo deles para se apresentar a Deus. 



- O Rei do Cangaço, ao cair morto, portava jogo de bornais em lonita verde-oliva clara, 
inteiramente floreado nas cores amarelo-ouro, rosa claro, azul-real e vinho. O de Zé 
Bahiano, em brim-caqui, adornava-se nos matizes escarlate, amarelo-ouro, castanho 
escuro, azul-real e rosa claro. (...) O de Maria era caprichosamente ornamentado com 
nove cores: verde, vermelho, amarelo, salmão, azul, rosa, laranja, lilás e roxo. 
São os tons que hoje são vistos na Sistina. 

Já o chapéu de Lampião era uma obra à parte, com suas estrelas de oito pontas 
costuradas nas abas, com que procurava se proteger pela frente e pelas costas... além de 
cerca de setenta peças de ouro. Sua foto e descrição no livro já valem os cento e 
cinqüenta reais que paguei pelo volume. 

Que ninguém faça doravante, recomendo, romance, cordel, teatro, filme nem quadro 
sobre cangaceiros, particularmente sobre Virgulino, sem ter já como relíquia este 
“Estrelas de Couro – A Estética do Cangaço”, de Frederico Pernambucano de Mello. 



Por: Carolina Albuquerque




quinta-feira, 31 de outubro de 2013

“Caso Maria” expõe preconceito e causa temor entre ciganos europeus

Ativistas de direitos humanos relatam preocupação e criticam cobertura da imprensa

O caso da menina búlgara Maria, encontrada em meados de outubro com uma família de ciganos em Farsala, na Grécia, causou preocupação no povo Roma (como também são chamados os ciganos), que teme ser alvo de uma nova onda de xenofobia na Europa.


Para ativistas britânicos e entidades de defesa de direitos humanos europeus, a cobertura da imprensa internacional foi sensacionalista e tendenciosa: antes do exame de DNA corroborar com a versão dada pelo casal cigano – de que Maria era filha de uma mulher que abriu mão de sua guarda por não ter como sustentá-la –, jornais especulavam se a criança havia sido sequestrada e o casal pertencia a uma rede de tráfico de pessoas.



"É revoltante a maneira como o tema foi abordado pela mídia e, ao mesmo tempo, muito preocupante. Espantou o choque e o horror que causou à sociedade o fato de uma menina loira e de olhos azuis ter sido encontrada em uma família cigana, vivendo abaixo da linha da pobreza. Infelizmente, agora que foi comprovado que ela é de origem cigana também (a mãe da menina vive na Bulgária e é cigana), a imprensa já demonstra que não se importa mais com o destino dela", criticou o jornalista inglês Jake Bowers, em entrevista a Opera Mundi.



De família cigana, Bowers se especializou, há 16 anos, na cobertura de temas relacionados aos direitos da população no Reino Unido, onde estima-se que vivam entre 60 mil e 300 mil ciganos. O jornalista, que é pai de três meninas loiras e de olhos azuis, disse ter se assustado com o teor da cobertura “baseada em mitos e estereótipos antigos”.



Agência Efe


Para o jornalista Jake Bowers, o fato de muitos ciganos não seguirem as leis europeias aumenta o preconceito contra eles



"Isso demonstra o total desconhecimento que a imprensa tem da cultura Roma. Há séculos as famílias ciganas adotam como suas as crianças de famílias mais pobres e vulneráveis. Infelizmente, a ideia de que os ciganos roubam crianças é um mito muito antigo, e o nosso grande temor é que esse caso contribua para aumentar o estereótipo que tanto prejudica a comunidade", afirmou Bowers, que é ex-editor do site Traveller's Times, veículo voltado para a população cigana na Grã-Bretanha.



Ele não está sozinho na critica: para o Gypsy Council britânico (conselho cigano local), a cobertura foi uma "publicidade racista e negativa", sendo que tanto veículos de comunicação como as autoridades devem um “pedido de desculpas” aos envolvidos.


O jornalista admite, entretanto, que a cultura cigana, muitas vezes "informal" e não adepta às leis locais, prejudica o próprio grupo. É o caso do casal que criou Maria: embora a mãe biológica da menina admita ter aberto mão de sua guarda, os “pais adotivos” enfrentarão julgamento criminal na Grécia.


Preconceito racial



Para o European Roma Rights Centre (ERRC, centro europeu de direitos da população cigana), o episódio com Maria  expôs o preconceito que cerca essa população. Pouco depois do caso vir à tona, o órgão foi informado de que um grupo de skinheads tentou tirar um menino de dois anos de família cigana na Sérvia, por ele "não ser tão escuro quanto os pais".



"Criminalidade é algo individual, não marca registrada de uma etnia. Infelizmente, quando um caso envolve alguém Roma, com frequência ele é reportado como um 'ato dos ciganos'. É a propagação do estima e da criminalização da etnia. Não estou dizendo que a mídia deveria defender os ciganos, mas ela tem que questionar todos os lados da história sem propagar estereótipos", criticou Sinan Goeçen, coordenador de comunicação do ERRC.



Dias após o caso Maria, duas crianças – também loiras e de olhos claros – foram tiradas de suas famílias na Irlanda, por não serem parecidas com os pais. A polícia irlandesa alegou ter suspeitado de sequestro, mas exames de DNA comprovaram a ligação com os parentes e elas foram devolvidas.



Em nota, o ERRC cobrou dos veículos de comunicação e das autoridades "mais responsabilidade" e rigor na apuração dos fatos antes de divulgá-los ao público. O ERRC também publicou um guia com instruções legais para que as famílias ciganas saibam como agir em casos como o que ocorreu na Irlanda.



Contudo, os casos não foram os únicos episódios que envolveram ciganos e dominaram o noticiário europeu nas últimas semanas. Também em outubro, a França foi palco de protestos após uma estudante de 15 anos, Leonarda Dibrini, ser deportada para Kosovo quando retornava de uma viagem escolar. O tratamento conferido à garota, que foi abordada pelas autoridades diante dos colegas de sala, motivou protestos pelo país.



De acordo com o centro europeu, 12 milhões de ciganos vivem na Europa atualmente, grande parte em situação de pobreza. “Ainda assim, somos invisíveis aos olhos dos políticos”, critica o jornalista.

Retirado:http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/32136/caso+maria+expoe+preconceito+e+causa+temor+entre+ciganos+europeus.shtml

Por: Carolina Albuquerque

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Lei de Proibição de Casamentos Mistos da África do Sul

casalmisto
A Lei de Proibição de Casamentos Mistos ["Prohibition of Mixed Marriages Act" (Act No. 55 of 1949)] foi uma lei do Parlamento sul-africano que proibia casamentos entre “europeus” (pessoas brancas) e “não-europeus” – evitar palavras raciais não evita racismo e às vezes dissimula.

Ela foi uma das primeiras peças da legislação do apartheid introduzidas após Daniel François Malan, em 1948, tornar-se primeiro-ministro da então União da África do Sul, uma monarquia que tinha por rainha Elizabeth II, da Inglaterra.
A nova lei fazia par com a Lei de Imoralidade [ Immorality Act], de 1927 (e sua sucessora, a Lei de Imoralidade, de 1957), que proibia relações sexuais extra-maritais entre pessoas brancas e pessoas de outras raças. Ela foi revogada em 1985 pela Leia de Emenda da(s Leis de) Imoralidade e Proibição de Casamentos Mistos [Immorality and Prohibition of Mixed Marriages Amendment Act].
Ela recebeu uma emenda, em 1968, pela Lei de Emenda da Proibição de Casamentos Mistos [Prohibition of Mixed Marriages Amendment Ac], que tornava inválidos casamentos inter-raciais contraídos por homens brancos sul-africanos vivendo fora da África do Sul.
O texto abaixo é a tradução do originalmente publicado, sem as emendas de 1968.
LEI
Para proibir os casamentos entre europeus e não-europeus, e prever as questões incidentais .
(Texto em Inglês assinado pelo Governador-Geral).
(Sancionado em 01 de julho de 1949).
FICA DELIBERADO pela Mais Excelente Majestade do Rei, o Senado e a Casa da Assembléia da União da África do Sul, como segue: -
1 . (1) A partir da data de início da presente lei o casamento entre um europeu e um não-europeu não pode ser celebrado, e qualquer casamento celebrado em violação das disposições desta seção será nulo e de nenhum efeito : Desde que -
( a) qualquer casamento deve ser considerado válido , se -
( i) que tenha sido celebrado de boa-fé por um oficial de casamento, e nenhuma das partes envolvidas, ou qualquer outra pessoa em conluio com um ou outro deles, fez qualquer declaração falsa relativa ao dito casamento nos termo da contravenção da seção quatro , e
(ii) qualquer parte de tal casamento que professa ser um europeu ou de um não-europeu , conforme seja o caso, seja na aparência obviamente o que ele professa ser, ou é capaz de mostrar, no caso de uma parte que professa ser um europeu, que ele habitualmente se consorcia com europeus como um europeu, ou, no caso de uma parte que professa ser um não-europeu, que ele habitualmente consorcia com não-europeus como um não- europeu;
( b ) Quando qualquer casamento desse tipo foi celebrado de boa-fé por um oficial de casamento, quaisquer filhos nasceram ou foram concebidos de tal casamento antes dele ter sido declarado inválido por um tribunal competente, deverá ser considerado legítimo.
(2) Se uma pessoa do sexo masculino que está domiciliada na União entrar em um casamento fora da União que não pode ser celebrado na União nos termos da sub- seção (1), então esse casamento será nulo e de nenhum efeito na União.
2 . Qualquer oficial de casamento que, conscientemente, realiza uma cerimônia de casamento entre um europeu e um não-europeu será culpado de um crime e sujeito a uma multa não superior a cinquenta libras.
3. Qualquer pessoa que é na aparência obviamente um europeu ou um não-europeu, conforme seja o caso, deverá, para efeitos da presente lei, ser considerada como tal, a menos e até que se prove o contrário .
4 . Qualquer pessoa que faz uma falsa declaração a um oficial de casamento, relativa à questão de saber se qualquer parte que pede para ter seu casamento celebrado por tal oficial de casamento é um europeu ou um não-europeu, sabendo que tal declaração é falsa, será culpado de delito e sujeito às penalidades previstas em lei para o crime de perjúrio .
5. Esta Lei será chamada Lei de Proibição de Casamentos Mistos de 1949.
De Disa e Wikisource, em 23/09/2013.


Por: Carolina Albuquerque

FLOR BRILHANTE E AS CICATRIZES DA PEDRA




Flor Brilhante é a matriarca de uma família indígena de rezadores Guarani-Kaiowá que vive na reserva de Dourados-MS, Brasil. Lá, cerceados de seu modo de viver, tentam sobreviver preservando conhecimentos e hábitos da cultura dos antigos, enquanto convivem com os efeitos e mazelas causados pelas explosões continuas de uma usina de asfalto, que dinamita e explora uma pedra sagrada no território da aldeia há mais de 40 anos.




Por: Carolina Albuquerque

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Desfile de moda com modelos negras plus size surpreende na semana de moda em Paris

Por Anna (Preta) Cristina de Almeida para as Blogueiras Negras
O estilista Rick Owens inovou com um desfile arrojado, animado e questionador.
O mundo da moda, em suas limitadoras padronagens, raramente destaca a beleza da mulher negra e da mulher gorda. A supermodelos Jourdan Dunn (a 28a mais poderosa do mundo) denunciou, em Junho deste ano, que havia sido cortada do desfile de alta-costura da grife Dior em decorrência do tamanho dos seus seios, considerados “fartos” para uma modelo. No seu twitter, disse ironicamente: “Normalmente cancelam-me por ser negra, portanto o cancelamento por causa dos meus peitos é de o menos”. Apesar das defesas da Dior – e de diversas outras marcas – quanto a presença de modelos negras, as estatísticas apontam que elas não chegam a ocupar 5% do elenco dos grandes desfiles, sobretudo nos de alta-costura.
Desfile Rick Owens. Reprodução
Desfile Rick Owens. Reprodução
Dunn foi cortada dos desfiles em Paris de Inverno – cidade palco para a inovadora proposta de Rick Owens na coleção da Primavera. Diferente de todos os demais estilistas, ele apostou nas modelos plus size, em sua maioria negras, que fizeram uma belíssima performance de step dance para apresentar sua coleção. As roupas, com alfaiataria rígida em tons de preto, branco e terra, vestiam mulheres reais que transferiram o enfoque da sua forma física para sua arte.
step dance é uma dança percussiva, cujos sons são produzidos pelo corpo, através das batidas dos pés e das mãos. Uma dança forte e expressiva, assim como as modelos do desfile de Owens. Divididas em dois grupos com coreografias distintas, as dançarinas foram recrutadas de várias cidades distintas e não tem o hábito de desfilar – o que as mostra ainda mais próximas às mulheres reais.
O resultado desta ideia questionadora e relevante, obviamente, foi atentar para o mundo que as mulheres reais podem (e devem), ser mulheres admiradas. A moda pode quebrar os grilhões que aprisionam tantas moças apegadas aos padrões. E ainda prova que a celebração da diversidade racial e corporal é comercialmente relevante, esteticamente valiosa e capaz de promover um espetáculo belíssimo.

Por: Carolina Albuquerque

sábado, 12 de outubro de 2013

‘Não pode haver tribunal racial’, diz médico aprovado por cotas no Itamaraty

    Mathias opta pelo ingresso por cota desde a implantação da política no concurso  Foto: Ana Branco / Agência O Globo

  • Uma entrevista com Mathias Abramovic, o candidato de pele branca e olhos verdes que se declarou negro ao se inscrever no concurso
  • Ex-aluno de colégio de elite e morador de bairro nobre, ele passou na primeira fase graças à reserva de vagas para afrodescendentes
  • ‘Bisavó por parte do meu pai é negra. Por parte da minha mãe, tenho avós pardos’, conta ele. ‘Sou uma concentração de minorias’
Mathias opta pelo ingresso por cota desde a implantação da política no concurso Ana Branco / Agência O Globo


RIO - Escoltado pela cadela fox paulistinha Penélope, Mathias Abramovic tem nas mãos um exemplar de “Casa grande e senzala”, herdado de um avô, médico — a mesma profissão escolhida por ele, por seu pai e por seu irmão. A clássica obra de Gilberto Freyre, que acompanhava Mathias nesta entrevista, faz parte da bibliografia do concurso de admissão à carreira diplomática no Instituto Rio Branco, o Itamaraty, e aborda um tema que colocou o carioca na berlinda no último mês: a miscigenação como parte da formação da sociedade brasileira.
Desde 2011, quando o Itamaraty instituiu cotas para afrodescendentes como benefício na primeira fase do concurso, Mathias opta pela autodeclaração. Naquele ano, o médico de olhos verdes e declarada ascendência negra e índia não apareceu na lista dos 30 cotistas, pois obteve uma nota alta o suficiente para figurar entre os 300 candidatos da listagem geral. Ele foi aprovado em três das quatro fases do concurso. Em 2012, foi reprovado na primeira fase. Este ano, figurou entre os dez afrodescendentes aprovados na primeira etapa, candidato a um salário de R$ 13.623,19. Na segunda etapa, Mathias obteve 59.89 pontos, onze décimos abaixo da nota de corte para a convocação, no dia 21, para a fase seguinte. Ele entrou com recurso para revisão da nota da prova escrita de língua portuguesa e aguarda o resultado.
Ex-aluno do Colégio Santo Agostinho do Leblon, um dos mais tradicionais do Rio, e formado em Medicina pela Uerj em 2003, Mathias mora com a mãe no Jardim Botânico, na Zona Sul, enquanto divide sua rotina de estudos para o Itamaraty com dois plantões por semana como clínico geral em uma unidade emergencial pública. O médico, que prefere não dizer há quanto tempo estuda para ingressar no Itamaraty, é bolsista no curso preparatório Clio, benefício concedido àqueles que obtêm boa classificação nas provas internas da escola.
A história sobre Mathias e as cotas do Itamaraty veio à tona em uma reportagem do site de Educação, do GLOBO, há um mês, e agora o médico fala sobre ela pela primeira vez. Ele responde às questões sobre a polêmica de forma diplomática, argumentando pausadamente e, de vez em quando, consultando anotações que levou a uma praça calma do Jardim Botânico, onde a entrevista foi concedida. Embora colegas de Mathias no curso afirmem que o estudante emitia opiniões contrárias às cotas raciais no Itamaraty, o médico afirma se enquadrar nessa política no aspecto legal e moral, justificando que há na árvore genealógica de sua família avós e bisavó negros. Segundo ele, critérios socioeconômicos seriam mais interessantes para promover a inclusão.
O GLOBO: Você se formou em Medicina na Uerj, mas desistiu duas vezes da residência em oftalmologia. Por quê?
Mathias Abramovic: A primeira vez foi involuntária, porque no ano em que passei (na residência), em 2004, o serviço militar era obrigatório, e não existia ainda a reserva de vagas (para médicos no programa de residência em que se classificaram). Em 2005, como já não era o meu ano obrigatório de servir, passei novamente (na residência), mas escolhi fazer o curso de paraquedista no Exército. Por isso, abri mão da minha residência pela segunda vez. Acabei gostando e servi ao Exército durante cinco anos e meio. Tinha muitas viagens, muitas missões, pude conhecer o resto do país.
Por que você, na terceira geração de uma família de médicos, decidiu tentar o concurso para diplomata?
Apesar de eu ter gostado muito de servir ao Exército, já sabia, desde que cheguei ali, que era temporário. Achei bem interessante, bastante aventura, mas sabia que não queria fazer carreira ali. Então, em 2007, comecei a procurar saber sobre o concurso, um pouco depois comecei a tentar as provas e estou insistindo desde então.
O que o encantou nessa carreira? A estabilidade?
Não foi uma questão nem de dinheiro, como é para alguns, nem de estabilidade. Eu provavelmente conseguiria mais dos dois na área médica. Foi uma questão de me identificar com a carreira. Sempre gostei de conhecer novos lugares e não apenas de passar por eles. Sempre tive uma certa facilidade para fazer amizades, para me relacionar, e por isso escolhi a carreira diplomática. Além disso, desde o segundo grau (atual ensino médio) eu tinha o interesse. Só que alguém me aconselhou a fazer Direito para isso, e, na época, a única coisa que eu sabia é que eu não queria fazer Direito. Então, tirei da mente o Itamaraty, mas, depois, quando vi que era aberto a qualquer carreira, resolvi me empenhar.
Você se autodeclara afrodescendente desde que o Itamaraty instituiu essa política, em 2011?
Eu não me lembro exatamente quando começou, mas desde o primeiro ano em que houve a opção de autodeclaração, eu me autodeclaro.
Por que fez essa opção?
Porque eu me identifico. Realmente é uma questão de criação. Desde bem pequeno, minha família, minha mãe, meu pai sempre frisaram nossa origem multiétnica. Minha mãe, especificamente, sempre falava que a gente tem negro, índio... Ela mesma é nordestina, vinda do interior do Piauí. Veio para cá quando criança com o resto da família. Meu pai também tem origens variadas. Uma bisavó por parte do meu pai é negra. Por parte da minha mãe, eu tenho avós pardos. Na família da minha mãe, são dez filhos, e há grande variedade de tipos, de ruivo de olho azul até mulata ou mulato, e todos filhos da mesma mãe e do mesmo pai. Isso só é possível para famílias que têm uma carga genética muito variada, muito misturada. Acho que é a comprovação de que a origem multiétnica é indiscutível. Meu sobrenome não deixa esconder que tem uma origem judaica também. Então, eu sou de repente uma concentração de minorias. Negro com ascendência negra, indígena, nordestina e judaica.
Mas você se percebe dentro da sociedade como um afrodescendente? Alguma vez já foi discriminado ou teve menos oportunidades por causa de sua origem?
Eu me identifico como afrodescendente pelos motivos que já expliquei. E, é claro, dependendo da situação em que você está, as pessoas podem te olhar de uma maneira não tão enaltecedora. A experiência como afrodescendente é algo muito pessoal, personalíssimo. Nenhuma pessoa, independentemente da tonalidade de pele, por mais clara que seja, por mais escura que seja, vai poder dizer de outra se teve uma experiência mais afrodescendente ou menos afrodescendente. E, por esse motivo, eu concordo com a política de cotas que seja baseada em autodeclaração. Não pode haver outra maneira de implementar essa política.
E como você traduziria sua experiência afrodescendente?
Eu tenho um orgulho muito grande de ter essa origem, incluindo a africana, misturada com todas as outras.
As políticas afirmativas de cotas foram idealizadas pelo governo para pessoas com trajetórias de exclusão ou de dificuldades de inserção no mercado. Você acredita ser um alvo dessa política?
Eu acredito que a política de ações afirmativas, de maneira geral, é uma conquista importante e tem que ser mantida. Ela já existia antes, voltada para os portadores de necessidades especiais. Então, não é algo novo em essência. A gente não pode levar ao pé da letra o artigo quinto da Constituição que fala que todos são iguais perante a lei. A própria Constituição já impõe diferenças, por exemplo, o auxílio-maternidade. Não tem como se tratar de maneira absolutamente igual todas as pessoas. A política afirmativa foi discutida no Congresso, então a sociedade, por seus representantes, decidiu que a política deveria ser implementada e que as regras seriam essas. E escolheram esse termo afrodescendência especificamente. Eu, pessoalmente, acho que deveria ser mais abrangente ou então voltada, principalmente, para o critério socioeconômico.
Mais abrangente em que sentido?
Indígenas… E hoje em dia é um pouco menos, mas existe ainda uma carga, uma dívida histórica, como se fala, com os nordestinos. Eles imigraram para o Sudeste e para o Sul e até hoje são alvo de discriminação. A gente ouve falar de nordestinos agredidos na rua, e não existe uma política voltada especificamente para eles. Acho que a política ainda é tímida nesse aspecto.
O Brasil é um país miscigenado por natureza. Você acha que uma política que leva em conta a declaração dessas origens variadas é eficaz?
Acho que ela ajuda à medida que facilita que uma população que normalmente tem uma menor oportunidade consiga uma chance maior de aprovação no concurso. Quanto a se ela poderia ser melhor ou não, é uma questão que requer muito estudo, muita pesquisa em cima disso, e eu realmente não tenho conhecimento para argumentar. Com certeza, se o pessoal do Itamaraty optou por essa, foi depois de algum estudo aprofundado sobre o assunto. Não tenho base de conhecimento para poder argumentar exatamente como ela poderia ser melhorada.
Você citou que essa política é voltada para uma população que teve menos oportunidades. Você se sente enquadrado nesse objetivo da política de cotas?
Claro que me sinto. Uma vez que ficou definido que a cota é para afrodescendentes, eu me encaixo. Se eu me encaixo, não é apenas por uma questão legal, de autodeclaração, mas é uma questão moral de eu ter essa origem na minha família e de a lei ter sido voltada para isso. Então eu me encaixo. Eu me considero alvo da política.
Você imaginava a repercussão que teve sua opção pela autodeclaração?
Não imaginava essa repercussão tão grande e confesso que fiquei perplexo. Não pelo assunto em si, mas pela reação das pessoas. Fiquei perplexo com o preconceito do qual fui alvo. Pessoas que não conheciam nada sobre mim, sobre as minhas origens, e, baseadas em apenas uma foto, não hesitaram um minuto em me julgar mais ou menos apto a me declarar afrodescendente. O mais importante é que é um preconceito que a política procura evitar, que é o preconceito visual, o preconceito de aparência. Julgar a pessoa baseado naquilo que você vê, se ela é mais ou menos digna de se declarar afrodescendente, se é mais ou menos digna de entrar no Itamaraty. Também fiquei perplexo com as propostas que as pessoas davam, segundo eles, para melhorar a seleção. Você pode usar qualquer nome bonito, eufemismo, mas para mim é instituir um tribunal racial. Qualquer comissão avaliadora de aptidão afrodescendente, no fim das contas, estará sempre instituindo um tribunal racial, e as experiências que a gente teve, que são vistas na História, foram na Alemanha nazista e no apartheid sul-africano. A gente não precisa ser muito estudioso de História para saber que o resultado não foi muito bom.
As críticas em relação à sua escolha não foram apenas por você ter pele branca, mas também pelo fato de ser médico, pertencer a uma família de médicos, morar na Zona Sul do Rio. Questionam se você seria alguém que realmente precisaria de uma cota para entrar no Itamaraty.
Esse questionamento tem que ser feito ao Itamaraty, para que eles mudem a política de cotas deles para uma política socioeconômica, e não racial. Inclusive existe um problema prático muito grande de você determinar se uma pessoa é afrodescendente ou não, ou então preta, parda, amarela ou branca. Até o IBGE, que usa uma nomenclatura mais objetiva, baseia-se no critério de autodeclaração. Qual seria a outra opção? Trazer um mostruário de tinta igual ao de carros? A partir do “pardo seis”, a pessoa é afrodescendente? Além de ser um absurdo em si, dá margem ao favorecimento. Além disso, você tem variações que são naturais. Se eu ficar um mês pegando sol, vou ficar bem moreno. Quando eu fui me alistar na Marinha, olharam para mim e não me perguntaram o que eu era. Botaram lá: cútis parda. É uma questão, é claro, que só acontece com quem tem uma genética muito variada. A questão é que eu não tenho podido ir à praia justamente porque estou me dedicando aos estudos. Um critério objetivo, por mais que seja um anseio das pessoas, se não for socioeconômico, corre o risco muito grande de cair num tribunal racial e institucionalizar uma comissão que vai atribuir à pessoa uma raça A, B, C ou D, cada uma com direitos e deveres diferentes. Acredito que daí não pode sair coisa boa, principalmente num Estado que se espera democrático de direito.
Então você acredita que o critério socioeconômico é mais eficiente para uma política de inclusão?
Se o Itamaraty julgar que é mais adequado o critério socioeconômico, então deve mudar sua política de ação afirmativa e incluir critérios socioeconômicos. O critério socioeconômico, em teoria, poderia também ser motivo de uso de má-fé. A pessoa tentar falar que ganha menos do que ganha, mas isso é mais difícil. Você pode pedir uma declaração de renda, alguma comprovação de ganho ou de falta de rendimento. De alguma maneira, isso já é usado, por exemplo, no Bolsa Família. Você tem que dar uma declaração de que você tem limitação de meios para poder fazer jus ao programa. Isso seria uma maneira mais objetiva de selecionar os candidatos.
Você acha que a política racial é frágil?
A política racial no Brasil é difícil de ser implementada por causa da miscigenação. Em todos os extratos sociais, você vai ter brancos e negros. Em proporções diferentes, com aparências diferentes. Mas mesmo as pessoas mais abastadas vão ter algum traço do negro. Eu até trouxe aqui o “Casa grande e senzala” justamente para mostrar uma citação do Gilberto Freyre. Ele fala: “Todo brasileiro, mesmo alvo de cabelo loiro, traz na alma e no corpo a sombra ou pelo menos a pinta do indígena e do negro”. É um livro que faz parte da bibliografia do concurso. E você vê que na década de 1930, quando foi lançado o livro, já se percebia isso, que é difícil separar as raças aqui no Brasil. De lá para cá, você teve uma tendência cada vez maior de não ter uma segregação, mas uma mistura. Então, só posso acreditar que tem ficado cada vez mais difícil você separar as raças. A meu ver, aqueles críticos da minha autodeclaração, principalmente aqueles que prestam o concurso também, mostram que, no mínimo, não têm estudado a bibliografia indicada.
O conceito de raça dentro da Sociologia e da Ciência Política já foi superado, mas ainda é usado para políticas públicas porque existe discriminação...
Na verdade, cientificamente não existe uma divisão da raça humana. Só que existe um ranço muito grande, uma resistência — e eu não ouso dizer de onde ela vem — mas até hoje as pessoas usam. Desigualdade racial, critérios raciais ou então cotas raciais. Se a gente for olhar por esse lado, essa divisão já é equivocada desde o início. Se você não tem uma divisão de raças, você também não pode esperar que haja uma política de raças. Agora, se tem uma divisão socioeconômica, você pode implementar uma política de autoafirmação socioeconômica. O Itamaraty, como subordinado à Presidência da República, tem a obrigação de seguir suas determinações. Se a Presidência julgou por bem uma política de autoafirmação racial, então não seria correto o Itamaraty não seguir. Agora, se existe um questionamento quanto a se seria melhor um critério socioeconômico ou racial, aí é uma discussão que deve ser mais ampla, que abranja a sociedade inteira, e aí sim repercutir no Executivo e no Itamaraty.
Mas você, Mathias, acredita na política de cotas raciais?
Eu acho que seria melhor uma política de cotas que não deixasse de lado o critério socioeconômico. Claro que isso (a condição socioeconômica baixa) é mais ceifador de oportunidades.
Você não tem medo, caso entre no Itamaraty, de ser visto como alguém que teve uma atitude oportunista?
Não tenho receio porque as pessoas que eu conheço, que já estudaram comigo e passaram, não são preconceituosas, têm uma bagagem muito grande sobre o assunto. Seriam pessoas que, se fizessem isso, estariam incorrendo numa incoerência, porque se eu tiver, por algum motivo, que um dia me envergonhar de ter me candidatado por meio de cotas, então qualquer pessoa, independentemente da cor da pele, por mais escura que seja, deverá também que se envergonhar. E acho que não é o caso. Acho que todo mundo reconhece que não tem por que uma pessoa de pele escura se envergonhar. E se essa pessoa não tem que se envergonhar, eu também não tenho. Sou tão afrodescendente quanto ela.
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STJ), Joaquim Barbosa, afirmou este ano que o Itamaraty é uma das instituições mais discriminatórias do Brasil, ao lembrar que foi eliminado na prova oral. Você acha que o perfil do diplomata brasileiro deveria mudar, buscando alterar esse funil destinado a uma elite?
A declaração do Joaquim Barbosa fazia referência à época em que ele passou pela seleção, que era diferente da atual. Era uma seleção que incluía a prova e uma entrevista oral. E, claro, qualquer entrevista dá margem para o favorecimento, seja pela aparência, pelo apadrinhamento ou por qualquer critério. Ele faz referência a uma época que já passou. Há alguns anos o concurso é totalmente escrito, e as provas não são identificadas pelo nome. São feitas pelo Cespe, uma instituição de reputação ilibada, e, até onde eu sei, há plena confiança de que há isenção no concurso atual. Quanto ao fato de ser uma instituição elitista, é inegável. Só as pessoas que têm uma condição mais favorecida, que puderam ter uma graduação, além de dedicar quatro ou cinco anos de estudo para o concurso, conseguem passar. Mas isso não é particular do Itamaraty. Não é todo mundo que tem condições de sustentar o filho depois do segundo grau (ensino médio) por mais seis anos numa faculdade de Medicina. Outras carreiras também são muito elitistas, como a de juiz. E, assim, poderíamos enumerar várias outras que são elitistas no plano socioeconômico, porque não há como ser de outra maneira. Outra opção, supondo deselitizar os juízes, seria começar a colocar pessoas que só têm o segundo grau? Realmente não tem o menor cabimento. E por essa exigência de bagagem de estudo e experiência é que acaba havendo essa seleção, essa elitização. É fazer uma bolsa com critérios socioeconômicos (como o próprio Itamaraty já faz) para a pessoa se preparar para prestar o concurso: de juiz, da escola de Medicina ou qualquer outro. Acho que seria interessante o governo prover algum tipo de política, uma bolsa, para custear os estudos, seja em nível de graduação ou no preparatório para o vestibular, e depois nos concursos.
Quando se fala em uma política de cotas raciais, ela não teria um efeito mais rápido, principalmente numa instituição como o Itamaraty, para que a miscigenação seja representada no nosso corpo diplomático lá fora?
Um dos argumentos para a política de cotas raciais é que você tem um maior percentual de negros entre aquelas pessoas menos favorecidas do que entre as mais favorecidas. Se o Itamaraty ou qualquer outro órgão optar por uma política de cotas ou de auxílio de bolsas favorecendo pessoas com condição socioeconômica mais complicada, naturalmente você vai ter um favorecimento maior de negros e também das outras minorias que sofrem discriminação. Elas vão estar todas sendo favorecidas no mesmo grau, e você vai ter uma tendência a diminuir essa disparidade, essa elitização baseada tanto em critérios socioeconômicos como raciais ou de origem.
O Itamaraty deveria fazer uma mudança nesse sentido?
Como eu falei, tenho pouco conhecimento sobre o assunto. Acredito que há pessoas muito competentes dentro do Itamaraty, que devem ter estudado muito sobre o assunto, e eles devem ter o motivo deles para terem escolhido a política de cotas raciais. Não quer dizer que a política de cotas não precise ser revista ou melhorada.
Se hoje a política de cotas para afrodescendentes é a única forma de colocar pessoas que têm menos oportunidades nessa peneira, você não se sente tirando uma vaga?
O fato de eu ter me autodeclarado afrodescendente não me faz pensar que estou tirando vaga de outra pessoa que mereceria mais o lugar do que eu. Agora, o fato de eu ocupar uma vaga, seja como afrodescendente ou não, inevitavelmente tira a vaga de alguém. E, se foi alguém que não passou no concurso, provavelmente foi alguém que teve menos estudo do que eu. A gente também não pode cair no erro de, pensando em uma política de favorecimento, jogar na lata de lixo a meritocracia. Pessoas que estão estudando há mais tempo e tiveram melhores estudos merecem passar. A prova é feita para selecionar as pessoas que tiveram melhor desempenho. Então, normalmente, em qualquer prova séria, as pessoas que passaram tiveram melhores oportunidades de estudo, seja porque tiveram uma facilidade na criação, seja porque elas souberam usar a oportunidade delas. Se a gente quiser esquecer isso é melhor fazer sorteio. As pessoas se candidatam ao concurso, sorteia-se na loteria federal, e quem tirar o bilhete premiado entra no Itamaraty.
Você está estudando há quanto tempo?
Há um bom tempo. É que nem idade de mulher. Já chega uma hora em que fica constrangedor perguntar. Há mais tempo do que deveria.
Se você não passar desta vez, pretende continuar tentando o Itamaraty e se autodeclarando afrodescendente?
Eu, por enquanto, não tenho previsão de desistência.



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Por: Carolina Albuquerque

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Juninho, um machista no capricho


Juninho aprende a ser homem, macho, como se espera, é o que tem que ser

Por Miguel Rios
Juninho nasceu. Dia de festa na família, de orgulho. O filho varão. Quarto azul, roupinhas azuis. Azul é o ursinho. Azul é o chocalho. Trata-se de um menino, homem, e tem logo que ser identificado com tal. Não deixar dúvidas.

Juninho é carregado pelos tios e logo seu pênis, mesmo diminuto, é louvado. "Pintão!". "Esse puxo ao tio!" As tias se apressam em arranjar um par para quem tem um dia de vida. "Agora a filha de Maria e João tem com quem namorar", diz uma. "Tem também a de Pedro e Juliana", lembra outra. Chegam logo a um consenso que ele dará conta de todas.

É garanhão. É homem. Surge a conclusão que ele estava virado para o lado direito, pois, nessa posição, poderia ficar de olho na menininha ao lado no berçário. Conversa vai conversa vem, alguém lança a teoria que quando ele chora as garotinhas se calam para escutar o grito másculo do conquistador.

Juninho é homem e como homem será criado. É uma família que nutre a testosterona, a macheza, com muito cuidado. Não podem fraquejar, por tudo a perder.

O menino cresce e é teleguiado na ordem. Bola e carrinho. Falcon e Comandos em Ação. Um dia Juninho tocou em uma Barbie. De imediato foi repreendido. "Não é para menino". Ele beijou um amiguinho na bochecha. Recebeu uma bronca maior. Roubou um beijo na boca da coleguinha. Quanta alegria dos pais, que fingiram desaprovar diante dos familiares da garota, mas comemoraram em casa o avanço do amado homenzinho. "Esse não nega. Vai pegar todas. Hehehehe!" Como o pai está feliz.

É gradual. Juninho aprende a ser homem, macho, como se espera, é o que tem que ser. O tio o abraça e pergunta: "Quantas namoradas já tem na escola?" Juninho responde: "Sete". O abraço fica ainda mais apertado. Respondeu assim... na obrigação, no escapa. De tanto ser questionado e ficar perdido sem saber o que falar, contou as amigas de classe e jogou o número na inocência. Foi premiado, viu que agradou. Tempos depois aumentou para oito. Mas comemorado ainda. Juninho fixou que quanto mais aumenta a soma, mais homenageado é.

Aprendeu. Homem tem que pegar muitas, tem que contar que pega muitas e aí causa contentamento. Mulher é feita para ser apanhada. Juninho já sabe que isso "é coisa de homem", que "homem é assim mesmo", "que quem quiser que prenda suas cabritas que o meu bodinho está solto". Juninho fixou.

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Chegou na adolescência e tem consciência de que o mundo é machista, desde o começo é desse jeito, fim de papo. Ele dos que saem e paqueram. Dos que se ligam em uma garota e vão para cima. Dos que acham que a fêmea tem que ceder, que sua cantada é imbatível, que insistir é fundamental.

Juninho aprendeu com os parças que a mulher vai ali para ser incomodada, que ela faz doce, mas ela está querendo, que não tem que abrir para o beicinho dela, que macho que é macho não desiste. Ele já beijou forçando, puxou cabelo, levou tapa na cara e bateu de volta.

Juninho modelou a mente para identificar a menina para ficar e a para namorar. Normas que ele segue à risca, porque homem que é homem de respeito não se liga à vagabunda, não quer ouvir "tás com uma rodada?". Para namorar é a menina com menos fama de ficante possível. A comportada. A virginal. Para dar uns pegas é a liberta, a sem amarras, que ele conhece como piranha. A que não vai rejeitá-lo. A que taxaram como sempre disponível. Que é ir lá e pimba!, já pegou. Que se recusar ele tem o direito de reclamar: "Como assim ele ser recusado?", "Como assim aquela puta posar de difícil?". Juninho não entende. Não admite. Não foi o que lhe disseram desde sempre, está fora do eixo.

Não é o que lhe cobram. Juninho sabe que precisa corresponder. Caso algum requisito do macho ideal falte em sua ficha, ele tem que pagar. Preço, para ele, duro.

Se Juninho tropeçar diante da banca examinadora, que nunca para de fiscalizar, é chamado de gay. Instantâneo. Se fraqueja na caça sexual, é veado. Se usa um sapato fora das regras, é boiola. Se pede um chá na cantina da escola, é bicha.

Inadmissível para ele. Juninho foi doutrinado para pensar que, mas que tudo, homossexualidade é o que há de pior. Que seus tios e tias, primos e primas, avôs e avós, mãe e pai, sempre o guiaram no cabresto, com tanta pressão, tanta vigilância, tanto esforço, para evitar a desgraça. Que ele pode ser tudo. Machista, tarado, bandido, dar desfalque, trair um amigo, ser violento, mandar pessoas para o hospital. Tudo. Menos a desonra de ser gay.

Juninho treme apenas em pensar na possibilidade de que alguém bote sua macheza em dúvida. Nunca. Logo ele que para desmerecer chama logo de veadinho. Logo ele que vai para o estádio torcer e grita sem parar "Fulano, veado", "Time de mariquinhas". Que nem cogita ter um jogador homossexual manchando as cores de seu manto sagrado. Que caso ocorra vai ameaçar o cara,manda sair, já em pânico pela chacota que o adversário vai fazer pelo resto da vida.

Logo Juninho que não lava um prato, nem arruma a cama por ser trabalho de mulher. Logo ele que abusa dos gesto viris. Que abraça amigo quase na porrada para que o afeto não seja confundido com delicadeza. Que grita palavrão quando uma garota de minissaia passa, que coleciona Playboys, que de jeito nenhum chora porque nada a ver ser sensível, que transa mesmo sem estar a fim apenas para manter a reputação intacta.

Que acha que o mundo corre perigo de enveadar por causa dos direitos LGBTs. Que ficou sabendo que ativista homossexual é gayzista, que ser homofóbico é apenas bater em gays, que destratar, querer que continuem subcidadãos, subalternos, é defender o orgulho hétero, as famílias, a ordem natural. Que acha o mundo é hipócrita, já que ninguém quer ter filho gay, mas ficam defendendo.

Juninho é algoz e vítima. O mundo, que ele tanto acredita ser imutável, que como está deveria ficar, solidificou aos poucos, desde quando bateu suas primeiras palminhas, o que ele prega.

O mundo de Juninho é o de verdades velhas, fabricadas por interesse, de seus antepassados, que ele absorveu como suas. De que há pessoas subordinadas, que o lugar delas é aquele, que não têm nada que contestar. Elas têm é que se contentar.

Juninho é um rei. Está no lucro. Posto no topo da cadeia alimentar, em um ecossistema onde outros são presas. Para capturar, acasalar, procriar ou para destruir. Ele luta para perpetuar seu lugar dominante.

Juninho não atenta, em seu silêncio crítico e criativo, o quanto ele nada tem de atitude. De ele mesmo. É um papagaio, uma cópia. Um escravo, que asfixiou uma parte de si para dar satisfação, se moldar ao que se quer dele. É passivo.

Mas Juninho está nem aí, nem vai chegando. Raciocínios novos são frescuras de veado. Ficar lamentando injustiça é mimimi de veado. Homem bebe, arrota e dá no couro. E fica tudo bem.

Juninho tem mais é que se preocupar com o casamento que se aproxima. Com menina que ele desvirginou e engravidou. Não está muito na de juntar as escovas de dente, já caiu na greia dos companheiros, de que vai para a forca, que perder a liberdade, mas ele se compromete a não deixar a farra e a pegação. "Mulher em casa nada impede mulher na rua". E arranca gargalhadas. Se não der certo, separa e volta por completo para a curtição.

O importante é que Netinho nasce daqui a seis meses. Enxoval azul já encomendado. Max Steel e Hot Wheels na prateleira. Netinho vai puxar ao pai. Macho todo.


Postado por: Ana Carolyne Brasileiro