O Quilombo Urbano de Mangueiras, em Belo Horizonte , com processo avançado de
titulação junto ao INCRA, está ameaçado por um projeto de urbanização da Prefeitura do
Município de Belo Horizonte. O projeto apresenta como uma de suas justificativas a
construção de alojamentos para a Copa do Mundo de 2014, uma Vila da Copa.
Em 2008 uma equipe de antropólogos da UFMG elaborou um detalhado Relatório
Antropológico de Caracterização Histórica, Econômica e Sociocultural do quilombo (uma
verdadeira etnografia com mais de 200 páginas) que integra o processo de RTID do INCRA, já publicado no DOU. Parte do perímetro de cerca de 20 hectares pleiteado é hoje terra da família Werneck, uma influente família na cidade, que detém uma grande área não urbanizada na região. O espaço que até pouco tempo era desvalorizado, porestar em uma das regiões mais pobres de Belo Horizonte e devido ao seu relevo acidentado, se tornou em poucos anos cobiçado pelo mercado imobiliário, diante de realização de empreendimentos públicos, principalmente após a construção do novo Centro Administrativo do Governo Estadual, localizado a cerca de 5 quilômetros da Comunidade Quilombola de Mangueiras.
A família entrou com contestação ao Relatório Antropológico junto ao INCRA, há quase um ano, mas o recurso ainda está em análise. Simultaneamente, esta mesma família tem
negociado junto com outros empreendedores e a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte,
um projeto de urbanização da região lançado com grande euforia no final de março, na
mídia local.
Para a viabilização do empreendimento, a prefeitura propôs a alteração da Lei de Uso e Ocupação do Solo para a região, que já se encontra em discussão na Câmara de Belo
Horizonte. Em uma das matérias de um jornal local, a atuação entre prefeitura e
empreendedores privados tem sido chamada de “operação urbana consorciada”, pois em
troca da aprovação desse novo zoneamento, os empreendedores se comprometeriam em
financiar infraestrutura e equipamentos públicos para este “novo espaço”. Com as
mudanças, a permissão para construir na área aumentaria de 16,3 mil para 72 mil unidades habitacionais, um aumento de 440% da capacidade atual, com estimativa de custo de 7,7 bilhões. No acordo também faz parte o empréstimo de 3 mil unidades habitacionais para abrigar a Vila Olímpica durante a Copa do Mundo de 2014 (Jornal Estado de Minas,28/03/2010, p.26-27).
Tanto o novo zoneamento da região, quanto a proposta do empreendimento,
desconsideram o processo de titulação da Comunidade de Mangueiras junto ao INCRA. Os
dois parecem considerar apenas a atual posse do grupo e não o território pleiteado, embora a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte tenha sido devidamente notificada pelo INCRA sobre o processo de regularização territorial em curso. Sobre parte desse território está prevista a criação de uma RPPN e a construção de uma via “pública”, com 16 pistas, no moldes da Avenida Antônio Carlos, nesta capital.
O receio é que, em pouco tempo, comecem as obras de urbanização dentro do perímetro
pleiteado, prejudicando de modo irrecuperável o direito ao território do Quilombo de
Mangueiras. Tal risco é ainda maior diante dos fortes interesses imobiliários envolvidos no caso, bem como do fato do projeto vir atrelado às obras preparatórias para a Copa do Mundo de 2014, o que pode fazer com que prazos e embargos que deveriam ser respeitados venham a ser facilmente ignorados.
Cabe destacar que o Quilombo já vinha sendo pressionado pela ocupação urbana
desordenada à sua volta, com graves prejuízos ambientais. O fato, contudo, de um projeto oficial de ocupação ser lançado sem considerar o pleito territorial da comunidade quilombola ali existente é ainda mais grave e demanda medidas urgentes de proteção.
A comunidade Quilombola de Mangueiras é composta por 19 famílias residentes em 15
casas. Todos descendentes do casal de lavradores negros, Cassiano e Vicência, na segunda metade do século XIX, anterior a criação da cidade de Belo Horizonte.
Esse casal, junto com seus 12 filhos, utilizavam estas terras para seu sustento e para a reprodução do seu modo de vida, em uma área de aproximadamente 8 alqueires, cerca de 387 mil metros quadrados. Do território original o grupo hoje vive em cerca de 17 mil metros quadrados, dos quais, cerca de 90% apresentam fortes restrições ambientais devido a forte aclividade da área e das inúmeras nascentes de água.
Histórico de Invisibilidade.Este grupo tem sofrido processos contínuos de invisibilidade. Apesar do grupo possuir uma territorialidade centenária, a história oficial da cidade não a considera. Sua presença sempre fora invizibilizada por outros grupos sociais presentes na mesma região, portanto, não é de
se estranhar que a instalação da família Werneck na região, por volta da década de 20, tenha transformado a então Região do Isidora em região da Granja Werneck.
O registro do auto-reconhecimento pelo Estado Brasileiro em dezembro de 2005, e o
processo de titulação realizado pelo INCRA, parece não ter sido suficiente para que os empreendimentos realizados nos últimos anos considerasse a existência desse grupo social e considerasse medidas que resguardassem sua territorialidade frente aos impactos gerados por tais empreendimentos. Só nesses últimos anos foram pelo menos 4 grandes empreendimentos no chamado “vetor norte” de Belo Horizonte, a maioria, realizada pelo governo do Estado de Minas Gerais: o fortalecimento do Aeroporto Internacional Tancredo Neves, a duplicação da MG-10, conhecida por Linha Verde, a construção do novo Centro Administrativo do Estado de Minas Gerais e a duplicação da MG-20 que subtraiu parte de seu território.
Como a história parece se repetir, a comunidade foi surpreendida pelo anuncio desse novo empreendimento, que segundo os jornais, tem sido negociado a mais de um ano. Durante esse tempo a comunidade não foi convidada para participar de nenhuma discussão sobre o projeto. Um dos maiores desafios do grupo ao longo do último ano foi o de tentar inserir no endereçamento oficial da cidade, o Quilombo de Mangueiras, e assim poder registrar sua Associação. Enquanto isso uma das matérias publicadas afirma que a área é uma das “últimas áreas livres” de Belo Horizonte, ou ainda que ela pertenceria a alguns poucos proprietários.
Nessa semana, ainda sob o impacto da morte de sua liderança histórica e presidente da
Associação Quilombola de Mangueiras, o Sr Valter Silva, representantes da comunidade se reuniram com o Procurador da República em Minas Gerais , Dr. José Jairo Gomes, que ficou de estudar o caso. Esperamos que o Ministério Público atue de forma que prevaleça o interesse social da proteção de um território étnico seja resguardado frente ao interesse privado, por maior que ele seja.
Para além desta frente junto ao Ministério Público Federal, nós antropólogos e
pesquisadores associados do Núcleo de Estudos de Populações Quilombolas e Tradicionais -NuQ/UFMG pedimos apoio na divulgação desta moção e na luta das comunidades tradicionais pela permanência em seus territórios.
Belo Horizonte, 12 de abril de 2010
ASS: Melise Lima
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