Autor: EVERETT, Daniel
A linguagem nos faz humanos
O linguista que contraria as teses de Noam Chomsky diz que o dom da fala não é inato, mas produto das vantagens evolutivas da comunicação e dos valores culturais de cada povo
Entrevista com Daniel Everett
Professor da Universidade Bentley, em Boston, o americano Daniel Everett, originário do Massachusetts Institute of Technology (MIT), é um dos mais prestigiados linguistas e etnólogos do mundo. Everett passa boa parte do ano em pesquisas de campo na tentativa der obter resposta aos mistérios de como e por que o homem foi o único ser vivo a adquirir o dom da fala e decifrar que mecanismos tornaram possível a conquista da linguagem. Em seu sexto livro, Language: The Cultural Tool (Linguagem: a ferramenta cultural), que será lançado na próxima semana nos Estados Unidos, Everett define a linguagem como um artefato criado e moldado pela cultura, pela cognição e pelo instinto de se comunicar dos seres humanos. Ele concluiu que a humanidade só sobreviveu em sua espinhosa caminhada evolutiva e chegou ater conseguido se equipar com a sua linguagem. Suas descobertas constituem um aberto desafio à noção mais aceita até agora, de autoria de Noam Chomsky, segundo a qual gramática, e portanto a linguagem, é um atributo físico inato do cérebro humano - teoria que coloca todo o peso da especificidade humana na genética.
Em seu livro, o senhor redefine o conceito de linguagem. O que essa abordagem tem de novo?
Durante cinco décadas, os linguistas seguiram a teoria da gramática universal, concebida por Noam Chomsky. De acordo com essa teoria, a gramática e a linguagem são inatas ao ser humano e já vêm programadas no cérebro. Acho essa ideia ridícula. Nunca houve provas de que existem estruturas em nosso cérebro ou em nosso DNA que nos autorizem a dizer que a linguagem é hereditária. O célebre gene FOXP 2, que por um tempo foi classificado como o gene da linguagem e prova da gramática universal, tem na verdade múltiplas funções. Ele atua no desenvolvimento dos pulmões, dos controles dos músculos da face e define mais uma dezena de funções no organismo. O FOXP 2 tampouco é exclusivo do homem. Os ratos, alguns pássaros e outros animais têm esse mesmo gene.
Chomsky não deve ser levado a sério?
A verdade é que Chomsky não é geneticista, nunca fez pesquisas com biologia humana. Ele pôs de pé uma suposição ilusória e sem base nas evidências cientificas. É óbvio que todas as atividades humanas têm uma correspondência no cérebro. Quando algu6m empunha, por exemplo, um revólver, ocorre a ativação de determinadas regiões do cérebro cuja existência e função se devem a um ou mais genes. Isso não quer dizer que nascemos com um gene para o uso de armas. Significa apenas que nos valemos de nosso corpo e nosso cérebro para manipular essa ferramenta. O mesmo ocorre com a linguagem. Ela é uma ferramenta criada por nós, que foi desenvolvida com o uso da capacidade cerebral e corporal.
Definir a linguagem como uma ferramenta e colocá-la na mesma categoria de uma arma não reduz sua complexidade?
A linguagem não é apenas uma ferramenta. Ela é a ferramenta mais importante do homem. É ela que nos faz humanos. Pela fala e, depois, pela escrita, conseguimos formular pensamento e acumular conhecimento no decorrer das gerações. Um cachorro não pode saber como era o seu bisavô. O homem é o único ser que pode ter essa informação. Uma das maiores vantagens evolutivas da linguagem é a capacidade de reconhecer que um semelhante tem um cérebro como o nosso e pode pensar, como nós. A isso damos o nome de teoria da mente. Foi essa capacidade que nos possibilitou a comunicação. No momento em que um homem raciocinou que o outro perto dele tinha umamente igual, chegou à brilhante conclusão de que "ele pode me entender". Essa ideia básica, fundamental, está presente até hoje em todas as formas humanas de expressão. Foi somente a partir daí que conseguimos viver, plenamente em comunidade, que criamos a filosofia e a matemática, que inventamos demais ferramentas e nos constituímos em uma humanidade.
Chomsky tem poder político, O senhor não receia tê-lo como desafeto? Durante meu pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology, fui vizinho de sala de Chomsky. Até nos dávamos bem, já que eu ainda não tinha publicado minhas ideias contrárias à sua teoria.Há alguns anos, quando sua mulher morreu mandei-lhe uma mensagem de pêsames,destacando ainda que, apesar de nossas diferenças, eu reconhecia sua importância para o mundo acadêmico. Chomsky respondeu com simpatia, agradecendo. Mas publicamente agiu com rispidez, chamando-me de charlatão em uma entrevista. Isso me marcou muito porque mostra bem que tipo de pessoa ele é. Acredito que Chomsky só tenha conseguido esse poder que tem hoje de falar o que quiser mesmo mentiras, por sua atuação política, criticando os Estados Unidos. Graças a esse proselitismo, ganhou uma leva de seguidores e ergueu-se um muro de defesa em tomo dele. Recebo cartas desaforadas e e-mails violentos por discordar dele. Mas não posso deixar de defender o que acho correto.
Por que a linguagem deu origem a tantos idiomas?
Nossas línguas são resultado deu ma combinação de três fatores: a "capacidade cognitiva do homem, a cultura dos povos e o que as sociedades querem comunicar". Nosso corpo estabelece os limites de como nos expressamos, a cultura define como falamos; e lemos e a vontade de nos comunicarmos determina o que queremos dizer. É uma relação dinâmica. Cada uma dessas peças influencia as outras.
Como o senhor chegou a essa idéia?
Ela fica evidente ao analisarmos como são estruturadas frases em diferentes idiomas. Uma frase em português com o verbo "dar", ou em inglês com o correspondente, "give", não por acaso tem três elementos: a pessoa que executa a ação, a ação e o receptor da ação. É possível somar outros elementos a esses. Em vez de dizer apenas "João deu o livro a Maria", podemos falar "Pedro disse que seu João deu o livro para a irmã de Maria dá-lo a Maria". Na língua dos piraãs tribo com a qual vivi na Amazônia, só a primeira frase é possível. Para esses índios, uma frase sempre se encerra em si mesma. A linguagem piraã se vale de sufixos que chancelam o grau de veracidade do está sendo dito. São três sufixos: um informa que "eu vi isso com meus próprios olhos", outro revela que "alguém me contou isso" e um terceiro atesta que "eu digo isso com base em evidências". Se você perguntar a um piraã "João deu o livro para Maria?", ele responderá "híai". Híaí não é um sim. Significa que ele ouviu de alguém que o livro foi entregue. Esse cuidado é reflexo de um valor cultural especialmente caro aos píraãs, Para eles, é indispensável que o interlocutor apresente provas do que está afirmando. Os píraãs têm outras estruturas que são resultado claro da influência da cultura. Eles não conhecem os números. Só conseguem mensurar as quantidades e os volumes em pouco ou muito. Para eles, saber contar claramente não seria uma vantagem evolutiva. Identificar com precisão cada animal e árvore da floresta era decisivo e, como resultado, os píraãs desenvolveram um complexo e vasto vocabulário sobre isso.
Que influências da cultura o senhor identificou o português falado no Brasil ?
O brasileiro usa muito a palavra jeito, que não possui correspondente em inglês, nem na maioria das outras línguas. Um brasileiro diz: "Esse é o jeito brasileiro". Isso não tem tradução para o inglês. Se um americano quiser dizer a mesma coisa, terá de construir uma sentença bem mais longa. A palavra "jeito" é usada com muitas outras acepções em português, que não existem em inglês. A palavra "malandragem" também requer malabarismos linguísticos complexos para ser vertida para outro idioma. Para aprender a língua de um povo, é preciso compreender sua cultura. A grande maioria dos lingüistas não se dá ao trabalho de ir a campo e se satisfaz estudando documentos em seus escritórios. Dessas torres de marfim é que surgem ideias mirabolantes como as de Chomsky, sem evidências concretas a embasá-las.