domingo, 9 de junho de 2013

A decadência do indigenismo brasileiro


"Redescoberta do Relatório Figueiredo, sobre abusos cometidos pelo extinto SPI (Serviço de Proteção ao Índio), lembra o longo drama dos índios no país".
























O incêndio que destruiu sete andares do Ministério da Agricultura, em Brasília, no dia 16 de junho de 1967, transformou em cinzas milhares de documentos depositados na sede do Serviço de Proteção aos Índios (SPI). O incêndio ocorreu às vésperas da instalação da comissão de inquérito no SPI, ordenada pelo Ministro do Interior, General Albuquerque Lima, e chefiada pelo procurador Jáder Figueiredo Correia, em resposta aos graves fatos apontados por comissões de inquéritos da Câmara dos Deputados. Na época, o incêndio foi visto com suspeição, pois interessava a muitas pessoas acusadas de irregularidades a destruição desses arquivos.

Essa tragédia impulsionou um projeto de salvamento do acervo do SPI que ainda restava disperso pelo país, nos postos indígenas e delegacias da Funai, no início dos anos 1970. Milhares de documentos foram trazidos ao Museu do Índio para constituir, em 1976, um Centro de Documentação Etnológica. Esse acervo, de mais de 600 mil páginas, encontra-se agora preservado, higienizado, microfilmado e disponibilizado para o público. Nas últimas décadas, foi acessado por centenas de pesquisadores e possibilitou, com suas informações históricas, a delimitação de dezenas de terras indígenas. Hoje, o acervo integra o Registro Nacional do Brasil do programa “Memória do Mundo” da Unesco.

O que restava de documentação do SPI no arquivo da Funai, em Brasília, foi transferido, em 2008, para o Museu do Índio, inclusive um processo com 30 volumes, identificado recentemente como o Relatório Figueiredo (1968). No final dos anos 1960, esse relatório teve grande repercussão pública nacional e internacional, mas foi logo marginalizado pela ditadura militar.

Em menos de um ano de investigação — de julho de 1967 a abril de 1968 — a equipe do procurador Figueiredo visitou dezenas de postos indígenas e encontrou muita corrupção disseminada entre os servidores do SPI. Havia exploração ilegal da terra e do trabalho indígena, em situações inclusive de escravidão. O procurador mostrou-se impressionado com a violência sofrida pelos índios, pois encontrou prisões fétidas e constatou castigos físicos, maus-tratos, espancamentos, torturas e humilhações, produzidas pelos responsáveis pelos postos indígenas.

A produção agrícola indígena era desviada e apropriada por prepostos dos postos indígenas, enquanto jovens índias sofriam violências sexuais. Com a invasão de áreas indígenas, madeiras e minérios eram saqueados, matas devastadas e realizados contratos viciados e irregulares com madeireiras, por meio de propinas distribuídas a servidores.

Figueiredo constatou que essa situação perdurava há muito tempo e que havia conivência e protecionismo da direção do SPI com os servidores corruptos. Sem conseguir viajar por todas as áreas indígenas para estender suas investigações, o procurador valorizou a denúncia de massacres como o dos índios cinta larga, em 1963, no paralelo 11 (Mato Grosso) e a invasão das terras dos índios kadiwéu por latifundiários matogrossenses desde o final dos anos 1950.

Após o encerramento do inquérito, Figueiredo fez um balanço do seu trabalho ao depor, em junho de 1968, em nova CPI instaurada pelo Congresso Nacional para avaliar a situação dos índios no Brasil. À CPI o procurador disse que, ao encontrar índios doentes e famintos, interpretou a omissão governamental como extermínio, um genocídio desconhecido pelos brasileiros. A isto se somavam as iniciativas de governos estaduais e assembleias legislativas, contrárias aos interesses indígenas, dificultando ao máximo a concessão de terras para os índios.

O relatório retratava um contexto de decadência do indigenismo brasileiro. Figueiredo lembrou que causou grande comoção pública o fato de o documento relacionar, de uma só vez, inúmeros crimes ocorridos nas últimas décadas da ação indigenista estatal. Durante todo o processo de investigação, o procurador sofreu mais de 30 ameaças — de morte, de agressão e de constrangimento a sua família, mas não esmoreceu, tendo afastado dezenas de servidores, solicitado processos criminais contra ex-diretores e contribuído para a extinção do SPI. O que sua equipe descobriu também é encontrado disperso nos milhares de documentos do Fundo SPI, depositados no Museu do Índio e divulgados em artigos do livro “Memória do SPI” (Museu do Índio, 2011).

Hoje, territórios indígenas ainda são invadidos e seus recursos naturais explorados ilegalmente, com grande dano ambiental ao patrimônio de diferentes povos indígenas, como os yanomami. Na defesa de suas famílias e terras, índios são assassinados ou sofrem lesões corporais, culminando na onda de suicídios que atingem, há anos, os guarani kaiowá, diante da ausência de perspectivas de vida.

Rondon e Roquette-Pinto sempre se referiam ao sofrimento dos índios ao longo da História e à grande dívida moral do Brasil e dos brasileiros com esses povos. Como a leitura do Relatório Figueiredo aprofunda o nosso conhecimento do drama indígena, a circulação desses fatos — apoiada por narrativas de índios — impõe à Comissão da Verdade as mesmas atitudes éticas de indignação que, em determinados momentos de nossa História, contribuíram para o avanço da cidadania. Não seria o reconhecimento de injustiças históricas frente aos índios um fato extremamente significativo para fundamentar novas iniciativas do Estado brasileiro, junto a esses povos, em suas demandas atuais?

Autoria de Carlos Augusto da Rocha Freire, doutor em Antropologia Social e coordenador de Divulgação Científica do Museu do Índio, autor de “O SPI na Amazônia: política indigenista e conflitos regionais (1910-1932)” (2007); “Rondon: a construção do Brasil e a causa indígena” (2009); organizador de “Memória do SPI: textos, imagens e documentos sobre o Serviço de Proteção aos Índios (1910-1967)”.

Retirado:

Por: Carolina Albuquerque

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