Reconhecendo as sociodiversidades, repensando o Brasil
Por quais razões atualmente são obrigatórias rampas em prédios públicos, destinadas aos/as portadores de necessidade especiais? Porque existem delegacias para as mulheres? O porquê do Estatuto do Idoso? Do Estatuto da Criança e Adolescente/ECA? O porquê da Lei 11.645/2008 que tornou obrigatório a inclusão nos currículos escolares o ensino da História e Culturas Afro-brasileiras e Indígenas? Quais as razões do reconhecimento legal de direitos específicos e diferenciados na atualidade?
As respostas a essas perguntas podem ser encontradas observando a organização sociopolítica no Brasil contemporâneo. Nas últimas décadas em novos cenários políticos, os movimentos sociais com diferentes atores conquistaram e ocuparam seus espaços, reivindicando o reconhecimento e o respeito à sociodiversidade. Identidades foram afirmadas, diferentes expressões socioculturais passaram a ser reconhecidas e parcialmente respeitadas o que exigiu discussões, formulações e fiscalizações de politicas públicas que respondam as demandas de direitos sociais específicos.
Todavia se faz necessário ter presente que o reconhecimento dessa nova configuração da sociodiversidade no Brasil, não ocorre sem muitas tensões e conflitos a exemplo dos acalorados debates sobre as cotas para negros nas universidades. Porém, durante muito tempo no Brasil vigorou e sem restrições a chamada “Lei do Boi”. Tratava-se da Lei 5.465 de 03/07/1968 que ficou assim conhecida por beneficiar filhos de fazendeiros e criadores de gado que ingressavam sem vestibular nas universidades públicas nos cursos de Agronomia e Veterinária. Na verdade a Lei passou a valer para todos os cursos! E só foi revogada em dezembro de 1985! Ou seja, durante muitos anos em nosso país existiram, e sem discussões, cotas para ricos nas universidades públicas, pois a lei não beneficiava filhos de trabalhadores pobres no campo.
Os debates sobre o reconhecimento e respeito às sociodiversidades no Brasil contemporâneo exigem, portanto, um repensar sobre a História do país, discussões sobre a chamada “formação” da sociedade brasileira e da “identidade nacional”. A respeito da existência de uma suposta “cultura brasileira”, “nordestina”, “sertaneja” “pernambucana”, etc. A problematização das ideias e concepções a respeito da “mestiçagem”, do lugar dos índios, negros e outras minorias que formam a grande maioria da população em nosso país. É a partir dessas discussões que questionamos os posicionamentos de Chico Buarque, Tom Zé, Lenine e tantos outros, que defendem uma suposta cultura e identidade brasileira.
Produzindo uma identidade nacional: a mestiçagem
A concepção e afirmação de uma identidade, de uma cultura nacional no Brasil remontam ao Século XIX. Em meados daquele Século, quando ainda não tínhamos universidades públicas no Brasil, o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), sediado no Rio de Janeiro a Capital do Império, reunia os “homens de ciência” que formava a elite pensante do país.
O IHGB promoveu em 1843 o concurso “Como se deve escrever a História do Brasil”, que foi vencedor o alemão Karl von Martius que com o seu compatriota Johann von Spix, viajaram em uma expedição científica por todo Brasil entre 1817 a 1820. Na sua proposta sobre a escrita da História do Brasil, o naturalista Von Martius salientou a importância do índio, o negro e branco português na formação histórica do país, todavia ressaltando a maior relevância do colonizador pela sua responsabilidade civilizatória. A ênfase nas relações das três raças configurava-se na defesa da mestiçagem, ideia que foi posteriormente retomada por vários pensadores sobre o Brasil.
No pensamento literário, ainda que no Romantismo o índio foi eleito símbolo da identidade nacional, expressa, por exemplo, nas conhecidas obras indianistas de José de Alencar: O guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). O sertanejo (1875) situa-se no conjunto da literatura regionalista de Alencar, em que o autor escreveu um romance temático para cada região do Brasil. Em O sertanejo o personagem principal do enredo é Arnaldo, apresentado como homem arredio, porém bom, simples e servidor primeiro vaqueiro de uma fazenda no interior do Ceará. Figura excepcional e misteriosa, com o pleno conhecimento e domínio da Natureza, tendo o hábito de dormir no alto de árvores na mata, cercado de animais selvagens, sabendo distingui-los como ninguém.
Pelas características de Arnaldo descritas por Alencar, pode-se atribuí-las o de um indígena que carregando as peculiaridades de sua condição convive integrado ao mundo social da fazenda onde trabalha. Arnaldo é apresentado como submisso ao seu senhor e patrão. A sua submissão é o preço do seu reconhecimento. Para a Alencar, a passividade é o preço da integração de Arnaldo no mundo dos colonizadores que negavam a sua identidade indígena. Tantos estas imagens acerca dos indígenas, como as expressadas nas pinturas dos naturalistas viajantes no século XIX, foram incorporadas ao imaginário coletivo do país na época, e posteriormente reproduzidas nos manuais didáticos (SILVA, 1995, p.26-27).
Com o Realismo/Naturalismo nas últimas décadas do Século XIX a ideia da mestiçagem como explicação do Brasil foi retomada. O livro O mulato (1881) de Aluízio de Azevedo, por seu título expressa a concepção da mestiçagem. Na ascensão da literatura realista e naturalista influenciada pelos pressupostos raciais deterministas, em oposição ao Romantismo e ao indianismo, houve a exaltação das imagens do mestiço e, portanto, as imagens negras e indígenas foram deixadas de lado nos escritos literários. Sílvio Romero em sua História da Literatura Brasileira, que começou a ser publicada no início da última década do Século XIX, escreveu: “O mestiço é o produto fisiológico, étnico e histórico do Brasil; é a forma nova de nossa diferenciação nacional”. (ROMERO, 1980, p.120)
Para Sílvio Romero a História do Brasil era uma história da mestiçagem. A mestiçagem que seria superada pelo embranquecimento do português preponderante,
Não quero dizer que constituiremos uma nação de mulatos; pois que a forma branca vai prevalecendo e prevalecerá; quero dizer apenas que o europeu aliou-se aqui a outras raças, e desta união saiu o genuíno brasileiro, aquele que não se confunde mais com o português e sobre o qual repousa o nosso futuro. (ROMERO, 1943, v.I, p.104).
A mestiçagem, portanto, seria uma condição transitória,
O mestiço é a condição desta vitória do branco, fortificando lhe o sangue para habita-lo aos rigores do clima. É uma forma de transição necessária e útil que caminha para aproximar-se do tipo superior. Pela seleção natural, todavia, depois de apoderado do auxilio de que necessita, o tipo branco irá tomando a preponderância, até mostrar-se puro e belo como no velho mundo. (ROMERO, 1943, v.I, p.231).
A ideia da mestiçagem com explicação do Brasil que se consolidava no final do Século XIX foi retomada no século seguinte. Ao participar representando o Brasil do Congresso Universal das Raças realizado na cidade de Londres em 1911, o cientista João Baptista de Lacerda, pesquisador do Museu Nacional no Rio de Janeiro, exaltou a mestiçagem brasileira e defendeu a imigração para o embranquecimento do país e a extinção da raça negra (SCHWARCZ, 2011), assim como fizera Sílvio Romero.
Com o Modernismo, a partir da Semana de Arte de 1922. Na obra mais conhecida desse movimento, o livro Macunaíma de Mário de Andrade publicado em 1928, o herói Macunaíma foi apresentado como a síntese da mestiçagem, louvado como símbolo da identidade cultural brasileira nas disputas com a invasão cultural estrangeira.
Na Década de 1930 aconteceram várias significativas mudanças socioculturais no Brasil, como a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, a industrialização crescente no Sudeste com o consequente enriquecimento e aparecimento da classe média urbana, o início das migrações do campo para as cidades principalmente o “Sul maravilha” (São Paulo) provocando também mudanças na configuração sociocultural do país. Alguns autores afirmam ter ocorrido nesse período um redescobrimento, uma refundação do Brasil. Nesse contexto sociopolítico, a História do país foi discutida e concepções revistas na afirmação de uma identidade sociocultural para o país.
É desse período a publicação dos conhecidos livros Casa grande & senzala (1933) de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buarque de Holanda e Formação do Brasil contemporâneo (1942) de Caio Prado Jr. Esses autores ao discutirem “as raízes” e “a formação” do Brasil em sintonia com aquele momento sociopolítico buscavam além de explicar o passado, apontar um projeto de futuro para o país. Explicações onde uma identidade nacional, a identidade brasileira, notadamente em Casa grande & senzala, era resultado de uma conformidade mestiça.
O nacionalismo e o desenvolvimentismo dos anos seguintes, inclusive expressos pela Ditadura Militar. Com seus arroubos nacionalistas a Ditadura Militar que se instalou no Brasil em 1964, interessou também sobremaneira a exaltação de um país com a identidade única caminhando a passos largos para o desenvolvimento. Progresso e unidade cultural do gigante país verde e amarelo eram temas indissociáveis nos discursos dos defensores da nação brasileira.
O discurso da monocultura nacional foi também defendido pelas esquerdas em seus projetos políticos de oposição a Ditadura Militar. O antropólogo, escritor e educador Darcy Ribeiro, que se dizia um político apaixonado pelo Brasil, foi um exemplo disso. Darcy foi um dos últimos autores que buscou formular uma explicação, uma síntese, uma teoria geral para a História do Brasil, por meio de seus vários livros, entrevistas e romances, publicados durante e depois do fim da Ditadura.
A ideia de um Brasil moderno formado por uma macroetnia, foi retomada e advogada pelo antropólogo no livro O povo brasileiro, segundo o autor a síntese de sua “teoria de Brasil”. Nesse livro publicado em 1995, Darcy mais uma vez enfatizou a sua defesa do mulato, como símbolo do Brasil e síntese da fusão das diferentes expressões socioculturais no país.
Os méritos de Darcy Ribeiro decorrem de ter sido ele o primeiro autor que discutiu o “problema indígena” de uma forma ampla, e por sua explícita posição política em denunciar as opressões sobre os índios na História do Brasil, o que tornou as ideias do antropólogo bastante conhecidas. A obra Os índios e a civilização, livro com várias edições, por sua quantidade de informações e sistematização de dados “continua a ser uma peça insubstituível, referência obrigatória para qualquer apreciação global da população indígena brasileira” (OLIVEIRA, 2001, p.421). Além de ter sido traduzido para outras línguas, adotado nos cursos de Ciências Sociais no Brasil, formando uma geração de estudantes, foi também lido por profissionais de outras áreas e pelo público em geral. As ideias de Darcy Ribeiro contidas nesse e outros livros do autor que discutem o Brasil, em muito influenciaram a visão de outros estudiosos e o senso comum sobre os índios, às expressões socioculturais do país.
Reafirmando as diferenças, questionando a mestiçagem
O historiador negro jamaicano Stuart Hall que se tornou um renomado professor lecionando em universidades na Inglaterra, a partir da perspectiva gramsciana discute o conceito de hegemonia nas relações socioculturais. Ao tratar sobre a ideia da nação moderna, esse autor discutiu as construções dos símbolos, discursos e representações a respeito de supostas culturas e identidades nacionais hegemônicas que buscam apagar as diferentes expressões socioculturais.
Para Hall,
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com o seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 1999, p.50-51).
A afirmação da mestiçagem como identidade do Brasil pode ser compreendida a partir da perspectiva apontada por Stuart Hall.
A música Leão do Norte é uma composição de Paulo César Pinheiro e Lenine, sendo cantada por esse último que é pernambucano. A letra dessa música é um exemplo das construções das imagens representativas de uma visão de identidade cultural geral:
Sou o coração do folclore nordestino
Eu sou Mateus e Bastião do Boi Bumbá
Sou o boneco do Mestre Vitalino
Dançando uma ciranda em Itamaracá
Eu sou um verso de Carlos Pena Filho
Num frevo de Capiba
Ao som da orquestra armorial
Sou Capibaribe
Num livro de João Cabral
Sou mamulengo de São Bento do Una
Vindo no baque solto de Maracatu
Eu sou um auto de Ariano Suassuna
No meio da Feira de Caruaru
Sou Frei Caneca do Pastoril do Faceta
Levando a flor da lira
Pra Nova Jerusalém
Sou Luis Gonzaga
E vou dando um cheiro em meu bem
Eu sou mameluco, sou de Casa Forte
Sou de Pernambuco, sou o Leão do Norte
Sou Macambira de Joaquim Cardoso
Banda de Pife no meio do Canavial
Na noite dos tambores silenciosos
Sou a calunga revelando o Carnaval
Sou a folia que desce lá de Olinda
O homem da meia-noite puxando esse cordão
Sou jangadeiro na festa de Jaboatão
Eu sou mameluco...
Cabe lembrar que o próprio título da música remete aos discursos usados pela elite pernambucana do Século XIX, para afirmar a soberania da Província nas disputas políticas com as oligarquias do Sudeste do país. Portanto, o título e a letra da música expressam ufanismo, patriotismo e afirmações identitárias.
Observemos que na letra da música seus autores além de se identificarem, dizem de onde falam: “Eu sou mameluco, sou de Casa Forte Sou de Pernambuco, sou o Leão do Norte”. Ou seja, afora serem mestiços moram em Casa Forte, tradicional bairro recifense habitado pela “açucarocracia” pernambucana, as famílias e seus descendentes de senhores de engenho do passado e ricos usineiros do presente. O bairro é conhecido por ser uma espécie de ilha de conforto, suntuosidade e tranquilidade no Recife, no que diz respeito às condições de moradia, centro comercial e serviços públicos. Porque os músicos não afirmaram serem mestiços moradores em uma das várias comunidades pobres da periferia da capital pernambucana?!
Mesmo tendo presente que os artistas têm a plena liberdade de expressões e que em se tratando da música vista com uma obra de arte, onde as metáforas é uma linguagem intrínseca nos universos das Artes, a letra da música em questão nos possibilita reflexões sobre os sentidos do seu conteúdo a partir da temática que estamos tratando, a construção de uma identidade cultural.
Em uma breve análise da letra dessa música, percebemos que os autores evocam as muitas e diversas expressões socioculturais existentes em todo o estado de Pernambuco. Citam personalidades renomadas do âmbito da Cultura, sejam literatos com Ariano Suassuna, músicos como Luiz Gonzaga ou animadores de expressões socioculturais como o Velho Faceta, que ficou bastante conhecido por liderar as apresentações do Pastoril em bairros do Recife. Da mesma forma indistinta, são citadas expressões socioculturais de diferentes localidades, espaços e temporalidades que ocorrem em Pernambuco. Todas colocadas lado a lado, em um mesmo plano supostamente valorativo.
Transparece ainda na leitura da letra da referida música a evocação de uma tradição comum, de uma identidade pernambucana, fundada em uma memória coletiva, mas, atemporal onde pessoas, lugares, expressões, objetos, lembranças e eventos compõem a cultura da pernambucanidade, a nação pernambucana, representada no que vem a ser o Leão do Norte.
O historiador Stuart Hall afirmou que um dos elementos principais que expressam a cultura de uma nação seria as narrativas ao fornecer imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais que representam a partilha de experiências e dá sentido a nação como uma comunidade imaginada. Um conjunto de símbolos que torna o lugar agradável aos seus habitantes, o solo nativo que confere uma identidade a ser reafirmada publicamente. Ocorrendo ainda uma ênfase nas origens, na continuidade, na tradição e na intemporalidade. (HALL, 1999, p.52-53). Tais reflexões são pertinentes para analisar a letra da música em discussão.
Todavia, se faz necessário descontruir uma suposta identidade nacional, ou outras afirmações tais como a regional, expressa em uma cultura hegemônica que nega, ignora e despreza as diferenças socioculturais. Portanto, uma suposta identidade e cultura nacional se constituem pelo discurso impositivo de um único povo. Uma unidade anunciada muita vezes em torno de ideia de raça, um tipo biológico. Pensemos no caso do Brasil as ideias do mulato, o mestiço, o nordestino, o sertanejo, o pernambucano dentre outras.
As ideias de uma identidade e cultura nacional escondem as diferenças sejam de classes sociais, gênero e étnicas ao buscar uniformizá-las. Negando também os processos históricos marcados pelas violências de grupos politicamente hegemônicos. Nega ainda as violências sobre grupos subalternos, a exemplo de povos indígenas e oriundos da África que foram submetidos a viverem em ambientes coloniais. Observemos ainda que as identidades nacionais além de serem fortemente marcadas pelo etnocentrismo são também pelo sexismo: se diz o mulato, o mestiço, o pernambucano, acentuando-se o gênero masculino.
Faz-se necessário, portanto, problematizar as ideias e afirmações de identidades generalizantes como a mestiçagem no Brasil, um discurso para, negar, desprezar e suprimir a sociodiversidade no país. Afirmar os direitos as diferenças é, pois, questionar o discurso da mestiçagem como identidade nacional usado para esconder a história de índios/as e negros/as na História do Brasil.